Olhar Direto

Sexta-feira, 19 de abril de 2024

Opinião

‘Desapropriada’ sem indenização justa

Chico Ferreira

“Bendito o que semeia
Livros à mão cheia
E manda o povo pensar!”
Castro Alves


Na semana passada fui surpreendida com a notícia de que a Biblioteca Pública Estevão de Mendonça, a maior do Estado, perdeu a sua sede histórica e importância simbólica – em plena era do conhecimento sob o domínio da tecnologia, do design e da criatividade!
 
Com o louvável desejo de trazer a Cuiabá grandes exposições de arte para que a população possa ter acesso à obra de destacados artistas brasileiros e estrangeiros sem precisar se deslocar aos grandes centros, o governo do Estado deparou-se com um problema crucial. A falta de espaços culturais com estrutura adequada para abrigar eventos dessa envergadura. Depois de décadas de menosprezo e abandono do setor, sabemos que esta situação não é algo que se resolva com rapidez ou improviso. Para complicar, o edifício que estava destinado para o Museu de Arte do Estado, doado pelo Sebrae-MT para esse fim, foi primeiramente ocupado pela Secopa, com a promessa de que ele seria devolvido após o evento. Entretanto, as modernas instalações que deveriam abrigar o Museu foram novamente destinadas a fins burocráticos, como sede da Secretaria de Estado de Cultura, Esporte e Lazer! Mais uma vez, os artistas ficaram a ver canoas...
 
Com investimentos irrisórios em cultura se o compararmos ao PIB do Estado, o segmento sobrevive, esquálido, alimentado pela visão estreita dos ‘homens de poder’ que nos legaram este cenário: museus de mentirinha, bibliotecas de faz de conta espalhadas por todo o Estado, seja nas escolas ou sedes municipais, teatros pequenos e acanhados... Tudo sem estrutura, funcionamento ou manutenção adequadas. É claro que para estes ‘senhores’, falar em investir 200 milhões na construção de um complexo cultural de verdade, com Museu de Arte, Museu Histórico, Biblioteca e Teatro com 1.500 lugares, seja ele cravado no Parque Mãe Bonifácia, no bairro do Porto junto ao Rio Cuiabá ou na grande área do 44º Batalhão de Infantaria Motorizada, entre outras tantas possibilidades, parece um absurdo que apenas sonhadores sem noção da realidade são capazes de alimentar – entre os quais confesso me incluir... Seria apenas 1/3 do que foi gasto no Complexo Esportivo da Arena Pantanal... Será que o futebol é mais importante que a cultura em todas as suas expressões?
 
Como se não bastasse, aquelas exíguas verbas destinadas à cultura, na maior parte das vezes ficaram à mercê das negociações políticas. Há! Quantos mestres nestas artes! Quantos talentos silenciados, sufocados, enquanto a mediocridade desfilou em fausta provocação.
 
Mas voltemos ao momento atual: para abrigar a Bienal de São Paulo no mês de novembro deste ano, como a sede de direito do Museu está servindo a fins administrativos, assistimos agora ao desalojamento da Biblioteca Pública Estadual Estevão de Mendonça, a maior biblioteca do Estado, do edifício histórico que ocupou durante 40 anos! A Biblioteca e o segmento do livro em Mato Grosso perdem mais um pouco da sua importância simbólica. A Estevão de Mendonça deixa o edifício e o espaço nobre no coração da cidade, para ser transferida a um anexo da tradicional Casa Barão de Melgaço, num sistema de gestão compartilhada. Fica resolvido o problema da Academia Mato-grossense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, instituições de grande importância que prestam relevantes serviços ao Estado e merecidamente precisam dar destinação àquele espaço, viabilizando-o, possivelmente como Museu das Letras e da Imprensa Mato-grossense. Mas, analisando do ponto de vista da comunidade usuária da Biblioteca, serão grandes as perdas com a mudança, que lamentavelmente está posta de forma permanente.
 
Com o argumento de que a Biblioteca não funcionava como deveria – nem poderia, uma vez que não recebeu os investimentos mínimos para tal – ao invés de decidir por dar a ela a devida importância com ações gerenciais, aporte de colaboradores dedicados e investimento condizente, ampliando-lhe o espaço, o governo escolhe dar-lhe ainda menos visibilidade com a sua transferência para instalações inadequadas e mal localizada, em edifício muito feio, atualmente em péssimas condições, com instalações elétricas antigas, sem concepção arquitetônica para abrigar respeitosamente a maior biblioteca de Mato Grosso e seus 100 mil títulos, acumulados em mais de 100 anos de história – sendo que destes, apenas 30 mil estão catalogados! Ou seja, o Estado não sabe nem o que é que vai encaixotar e entregar para uma gestão compartilhada!
 
Sendo assim, rezo para que ‘os senhores do tempo e do destino’ protejam a Coleção de Obras Raras de Mato Grosso, ainda não catalogada e que se apresenta em condições de grande fragilidade de conservação, precisando de higienização e restauro. Ficarão empacotadas em ambiente climatizado?
 
Agora vamos analisar a destinação do Palácio da Instrução, edifício de estilo eclético com base neoclássica, construído no início do século XX e inaugurado em 15 de agosto de 1914. Com suas grandes e fartas janelas, tão belas, é completamente inadequado como espaço expositivo para as artes visuais contemporâneas... Há décadas o Estado já deveria ter construído um Museu de Arte digno dessa designação, tamanha é a importância das Artes Visuais em Mato Grosso. Temos mesmo a convicção de que o edifício Moitará não seria suficiente para abrigar esse museu, mas por hora, seria a melhor solução para receber a Bienal. E o Palácio da Instrução, inteirinho, também não resolve as necessidades de um Museu de Arte! Considerando o que ouvi em uma palestra da nossa premiadíssima crítica de arte Aline Figueiredo, no Salão Nobre do Palácio da Instrução, de que a arte mato-grossense já nasceu contemporânea, e o desejo dos artistas já exaustivamente manifestado e nunca considerado, é necessário que se construa um Museu de Arte com concepção arquitetônica adequada e contemporânea, voltada para a nossa identidade cultural. Como exemplo de estilo apropriado podemos citar o trabalho de arquitetos premiados nacionalmente como José Afonso Portocarrero, com seus edifícios públicos modernos e inspirados na arquitetura indígena. A decisão de edificar uma obra como essa é uma solução para o problema: um Museu de Arte, de verdade; bibliotecas públicas, de verdade... Um Museu Histórico, de verdade... Não mais o jogo de faz de conta repetido ad nauseam, ad infinitum... que nos causa grande tristeza e constrangimento quando comparamos nossa cidade com outras capitais brasileiras ou outros países, onde a consciência da importância que se dá à arte e à cultura para a essência do ser são expressas em seus equipamentos culturais, no zelo pela sua produção cultural e respeito aos artistas, profissionais de criação e sobretudo com o público.
 
Sociedades desenvolvidas tem tanto respeito pelos livros e pelo conhecimento que deles emana, que suas maiores bibliotecas são verdadeiros templos do saber, monumentos à beleza e aprazíveis, estrategicamente localizados e preparados para embarcar leitores e espíritos curiosos com destino a grandes aventuras ou revelações.
 
Mas aqui, o que temos em todo o Estado são bibliotecas sem bibliotecários! Isso equivale a dizer que seriam como automóveis sem motorista, hospitais sem médicos, obras sem engenheiros... De que forma poderiam funcionar a contento? De que forma poderiam encantar, seduzir, levar ao aprendizado com prazer? Enquanto a população mato-grossense e seus estudantes não tem acesso a literatura, nem mesmo aos livros que nós, editores em Mato Grosso publicamos, representante da Biblioteca do Congresso Americano nos visita religiosamente de uma a duas vezes por ano, e leva tudo que publicamos para Washington... Sim, os nossos ‘livros de papel’ estão lá, muito bem cuidados e disponíveis para os ‘senhores do mundo’! Eles não querem os livros digitais. Querem os impressos. Lá eles sabem dar valor à informação, à literatura e ao conhecimento, e quiçá nos conheçam melhor que nós mesmos.
 
Gosto de sonhar com a possibilidade de transformação... De dentro pra fora! Sem ela não há solução! Acredito que o novo governo pode e quer mudar esta realidade que se arrasta por décadas. Se esforça muito para isso, estamos acompanhando. Mas precisa resolver problemas sem criar outros, como neste caso.
 
Por isso, ouçam a nossa súplica: devolvam o Moitará, que por direito pertence ao Museu de Arte de Mato Grosso! Ocupem-no com a Bienal. Pensem na possibilidade de construção de um Complexo Cultural. Ele custará apenas um terço do que custou a Arena Pantanal. Devolvam a importância simbólica da Biblioteca Pública Estevão de Mendonça e do livro como instrumento de formação e transformação dos cidadãos em Mato Grosso. O seu lugar é ocupando dignamente todo o Palácio da Instrução, que deve receber as devidas reformas e adaptações. Ou pelo menos, que esta ‘desapropriação’ ocorra com a indenização justa, em edifício e localização condizente com a sua importância e a sua razão de existir.

*Maria Teresa Carrión Carracedo é jornalista, comunicóloga, licenciada em Geografia, editora de livros na Entrelinhas e máster em edição pela Universidade de Salamanca
xLuck.bet - Emoção é o nosso jogo!
Sitevip Internet