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Quinta-feira, 28 de março de 2024

Opinião

De dom maior

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Bento Rodrigues, o tricentenário povoado à margem da Estrada Real, em Mariana, foi varrido do mapa numa data cravada para sempre no coração de Minas: 5 de novembro de 2015. Um mar de lama dos rejeitos depositados na barragem do Fundão de propriedade da mineradora San Marco, controlada pela Vale e a anglo-australiana BHP Billiton Brasil, ceifou vidas, aniquilou sonhos, apagou a memória coletiva de uma região que foi passagem obrigatória para o ouro de Minas abarrotar os cofres da Coroa, em Lisboa. Além disso, o rompimento chegou aos rios Gualaxo e Doce. Não se tratou de mero problema de meio ambiente: foi a maior tragédia ambiental do Brasil atingindo áreas em Minas Gerais, Espírito Santo e parte do litoral.

A tragédia de Fundão tem as digitais da omissão dos governos de Minas e federal; do Ministério Público Estadual (MP) e da Procuradoria Geral da República (PGR), do Ministério de Minas e Energia, e da Assembleia Legislativa mineira.  

Abri parênteses sobre Fundão para chegar ao nosso abençoado e ensolarado Mato Grosso, onde a máquina do poder arreganhou a porteira para o Grupo Votorantim explotar minérios de chumbo e zinco em Aripuanã; para a instalação de usinas de etanol tendo o milho por matéria-prima; e o corte raso da floresta. Por essa máquina entenda-se a dobradinha do governo estadual com a Assembleia Legislativa.

Nos meios políticos decisões no afogadilho e com indícios de interesses escusos são chamadas de tramoia na calada da noite.

Então vejamos: na semana passada a Assembleia limpou a pauta do primeiro semestre e baixou as portas para o vergonhoso recesso parlamentar de meio do ano, que oficialmente começa no próximo dia 17; isso com o aval dos 24 deputados. Na ociosidade, seu presidente Guilherme Maluf (PSDB) afivelou as malas e se mandou para o exterior. Pronto! Estava montando o cenário que escancarou a porteira para a Votorantim.

O vice-presidente da Assembleia, Eduardo Botelho (PSB), aproveitando-se da ausência de Maluf e na condição legal de seu substituto realizou sessões de interesse da Votoratim e do empresariado que opera na área do etanol. 

A legislação que surge é generosa em mimos. Um deles encolhe de 200 metros para 80 metros a distância do rio ao ponto de extração de minérios, o que agrada em cheio a Votorantim. Esse encolhimento afronta a lógica amazônica: os rios são de planície e se espalham pela vegetação ciliar e a mata distante. Não é preciso ser geólogo, engenheiro de minas e engenheiro civil pra saber a gravidade do que se fez. Também não é necessário ser cientista político para sentir que sobrou rapidez na elaboração e votação dos projetos e que faltou bom senso, serenidade e aquilo que pode ser chamado de responsabilidade no exercício de mandato eletivo.

No caso do chumbo, o encolhimento o deixará mais próximo das águas dos rios e não se pode desconsiderar que se trata de metal pesado, cumulativo no organismo, que não consegue eliminá-lo.

Botelho juntou-se a 14 deputados e esse grupo aprovou projetos de lei nascidos do tal dobradinha do governo com a Assembleia, sendo o primeiro representado pelo vice-governador Carlos Fávaro (PSD) e a outra na figura do deputado Dilmar Dal’Bosco (DEM). 

Fávaro, além de vice é secretário de Meio Ambiente (Sema); a equipe dele assessorou Dilmar na elaboração do mimo pra Votorantim. É preciso observar que Fávaro antes de compor a chapa de Pedro Taques em 2014, não havia disputado mandato eletivo na esfera política. Seu nome foi indicado pelo agronegócio – o segmento que botou dinheiro pesado na campanha de Taques – e mais especificamente por Eraí Maggi Scheffer, que é o maior produtor de soja do mundo.

Dilmar, para melhor esclarecimento, é irmão de Dilceu Dal’Bosco, que foi deputado estadual e era o homem forte na Sema, embora não haja papelada para se comprovar sua ingerência naquela secretaria, porque em alguns casos na penumbra do poder não se passa recibo. Como se nota, no loteamento do poder os irmãos Dal’Bosco transitam bem na área ambiental.

Do grupo que aprovou os projetos de interesse da Votorantim fez parte o líder do governo, Wilson Santos (PSDB), que coincidentemente ou não é irmão do comissionado presidente da Companhia Mato-grossense de Mineração (Metamat), Elias dos Santos. Essa empresa, do Palácio Paiaguás, executa a política mineral do Estado. O interesse pela aprovação foi tão forte, que reuniu até mesmo Zé do Pátio (Solidariedade), Emanuel Pinheiro (PMDB) e Zeca Viana (PDT), que fazem oposição ao governo Taques. O amém governista foi dado por Nininho, Zé Domingos, Pedro Satélite e Leonardo Albuquerque (todos do PSD); Saturnino Masson (PSDB); Elizeu Nascimento (PSDC); e Mauro Savi, Adriano Silva e Max Russi (todos do PSB); além, é claro, de Wilson Santos e Dilmar – um dos pais do escancaramento da porteira, e Botelho, presidente em exercício da Assembleia. 

O próximo passo para os projetos se transformarem em lei é a sanção de Taques, o que deverá acontecer o mais rápido possível, tamanho o empenho demonstrado por seu vice e a maioria da Assembleia. 

Em tese, a aprovação é legal, pois a Assembleia é soberana. Porém, há questionamentos que evidentemente serão evitados pelo grosso da imprensa, mas que não podem escapar do MP e do MPF. A mudança de regra ameaça seriamente o ecossistema amazônico na calha do rio Aripuanã e coloca em risco algumas etnias no entorno da área escancarada à explotação e antropização. Mais: a legislação que nasce não foi amplamente discutida com a sociedade, não mereceu a divulgação necessária e sequer foi comentada com a comunidade acadêmica, a militância ambientalista e os povos indígenas.

Enquanto cidadão concedo o benefício da dúvida aos personagens desse lamentável e preocupante episódio. Prefiro crer que Fávaro foi acometido de lapso conceitual, que Dilmar foi movido por forte convicção desenvolvimentista, que Botelho somente presidiu as sessões porque estava em jogo o interesse maior de sua amada terra, que Wilson Santos sequer lembrou-se de seus laços de consanguinidade e que os deputados da base aliada e da oposição buscaram a consensualidade por se tratar de uma nobre causa. Porém, na condição de jornalista peço ao MP e ao MPF que investiguem esse caso com amplitude e profundidade, com cada uma dessas instituições indo fundo em suas atribuições e cruzando informações sem que promotores e procuradores se deixem mover por sentimento complacente.

Peço investigação porque soa estranho a Assembleia realizar sessões estando em recesso e, ainda deliberar sobre tema polêmico em ano de eleições municipais sem que os deputados o discutam pelo menos com seus companheiros na área de sua influência direta. Peço também, porque não me convence a versão apresentada pela imprensa amiga, para o fato de Botelho presidir os trabalhos: disputa entre ele e Maluf pelo controle da mesa diretora. Meu Deus, os piores exemplos em eleição para compor mesas diretoras em Mato Grosso sempre foram dados pela Assembleia. Nos bastidores o que se ouve a respeito é de arrepiar careca. Presidir sessão não garante presidência do Legislativo pra ninguém. No nosso Legislativo, a coisa é bem real.

Acrescento que esse caso também precisa passar pelo crivo do Ministério do Meio Ambiente, que responde pela gestão florestal nacional; do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), que tem titularidade sobre o subsolo e os direitos minerários; pela Funai, que executa a política indigenista; e pela opinião pública, que na verdade é juiz soberano.

Não me tomem na condição de inimigo do desenvolvimento por questionar as benesses ora concedidas pela Assembleia e Fávaro a Votorantim. Nunca vesti camisa de ambientalista e sempre bati na tecla do “sim” ao meu Mato Grosso. No entanto, alguém precisa questionar esse enredo montado que poderá transformar parte das trilhas da Expedição Rondon-Roosevelt em Estrada Real e cobrir os rios Aripuanã, Madeira e Amazonas com um manto análogo ao da destruição do rio Doce da minha infância e juventude.

Espero ver o MP e o MPF em ação. Desejo que esse seja o último espetáculo grotesco na área ambiental e que a legislação costurada na cabala seja contida em nome da decência administrativa, da moralidade parlamentar, do meio ambiente e da vida que é o dom maior de Deus.

 

*Eduardo Gomes de Andrade é jornalista  em Mato Grosso  
eduardogomes.ega@gmail.com 
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