Olhar Direto

Sexta-feira, 29 de março de 2024

Opinião

Além das reações

Arquivo Pessoal

No mês de outubro de 2016, meu pai completaria 91 anos de idade se ainda estivesse entre nós. Mato-grossense, foi um homem que nasceu e viveu sempre conectado ao campo. Ao longo de sua vida, tornou-se uma alma mansa. Expressou muita sabedoria em seu modo de viver, e sinto-me afortunada de ter reconhecido sua evolução espiritual antes de seu falecimento. Assim, em nosso convívio, costumava observar suas atitudes e prestar muita atenção a tudo que dizia – sempre havia algo a aprender no meio de suas conversas, nas quais revelava profundas lições de vida com simplicidade e clareza.
 
Lamentavelmente, o condicionamento religioso faz com que, geralmente, a maioria das pessoas não perceba um Ser Desperto ao seu redor. Muitos imaginam que os seres purificados e santificados só podem existir na dimensão celestial ou nos altares das igrejas. Ou, ainda, apenas seu passado é levado em conta, sem considerar que as pessoas se transformam e têm a potencialidade de acender, a qualquer momento, a chama de suas velas, mesmo com alguma perturbação da periferia do ser.  
 
Neste aniversário, marcado pela saudade, lembrei-me particularmente de um episódio que se sucedeu no período natalino. Meu pai recebera um presente e a minha mãe, ao abrir, disse-lhe:
 
– Seria melhor se tivessem lhe dado outra coisa. Você não gosta de nada disso.
 
Ele, então, respondeu com voz firme e pausada:
 
– Eu agradeço tudo o que me dão. Até se me derem um saco de fezes, não vou reclamar nem ficar com raiva da pessoa que me mandou. Achou que eu merecia. Então, pra mim está certo. Quem sou eu pra saber o que mereço e o que não mereço receber?
 
Fiquei boquiaberta com sua observação. Somente uma grande alma teria força e compreensão para não devolver insultos na base de “olho por olho, dente por dente”. Certa vez deu-me esta orientação: “Não se deixe ofender por uma ofensa. E, se você é mais forte e ama a pessoa que a ofendeu, converse com ela e lhe dê conselhos”.
 
Neste momento, ocorreu-me também o que disse o Mestre Chico Xavier: “Fico triste quando alguém me ofende, mas, com certeza, eu ficaria mais triste se fosse eu o ofensor... Magoar alguém é terrível!”
 
O patriarca da minha família conseguiu entender a natureza da mente e a driblou em suas insanas reações, responsáveis por desastres emocionais sem fim na convivência humana, tanto consigo mesmo quanto com o outro em qualquer relação: familiar, social, profissional.
 
Essa recordação teve o poder de transpor o intelecto e impregnou-me em nível profundo. De repente, ao me abrir para a compreensão apresentada em seu exemplo, refleti sobre aborrecimentos recentes no convívio social. Minha mente se acalmou e desarmou o dominó das reações. Sim, revidar agressões, muitas vezes recebidas gratuitamente e fruto de meras projeções, quase nunca vale a pena. Provocam-se mais atritos e reações agressivas. No fim, inúmeras vezes, o silêncio é a melhor resposta.
 
“No silêncio, não há confusão”, dizia o meu pai. Em momentos de distúrbios e turbulências nos relacionamentos, quão apropriado é o aprendizado do trabalho experiencial com a respiração e a prática de sentar-se consigo mesmo e permanecer em silêncio, em estado meditativo por algum tempo – Zazen. E, só então, agir e tomar decisões.
 
No estado de harmonia interior, a resposta adequada à demanda dos desafios, independentemente de sua natureza, surge à luz do discernimento e da clareza mental. Dessa forma, não gera continuidade e quebra-se a corrente de reações sem nenhum sentido para a nossa existência.  
 
Em meio a lembranças, algumas reflexões e indagações acontecem... O que é ser santo? O que é morrer? O que é viver de verdade? E quando a saudade chega e aperta o coração, penso que simplesmente gostaríamos de ter a chance de reencontrar as pessoas amadas que partiram, estar em sua presença física novamente, prosear e dar-lhes um abraço, não é?
 
Mesmo sentindo saudade de Seo Hélio na dimensão terrena, ao ser acalentada e confortada pelos belos exemplos que registrei de sua vida, constato que as almas iluminadas jamais nos deixam – suas palavras de sabedoria e a fragrância do amor compartilhado nos acompanham por toda a eternidade.
 
Sou grata a quem puxou a minha memória e vivificou em mim quão rico foi o meu pai! Um homem como ele nos desafia e convida à interioridade e à iluminação.
 
Gasshô!
 
Enildes Corrêa é Administradora, terapeuta corporal Ayurveda e professora de Yoga com formação na Índia. Ministra palestras e seminários vivenciais a organizações governamentais e privadas. 
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