Olhar Direto

Quinta-feira, 25 de abril de 2024

Opinião

Sobre os salários na administração pública

A pauta esta semana na mída estadual, com projeção nacional, foi o contracheque de R$ 503.928,79 pago em julho ao juiz Mirko Vincenzo Giannotte, da 6ª Vara de Sinop. Os desdobramentos dessa divulgação pela imprensa incluíram milhares de comentários de anônimos nas matérias dos sites e nas redes sociais, artigos, explicações da Associação de Magistrados, nota técnica do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, culminando com a decisão da  Presidente do Conselho Nacional de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, determinando aos tribunais do país que informem os salários pagos aos juízes de forma detalhada, discriminando inclusive valores extras, como auxílio e verbas especiais.

Diante desse evento, pergunta-se: algo ainda pode ser acrescentado sobre este fato? Tudo já foi esclarecido? Esta repercussão está proporcional ou dezarrazoada? A postura do Magistrado em sua manifestação foi adequada? As explicações técnicas convenceram? Existe alguma “agenda oculta” de criminalização do serviço público? Estaríamos diante da famosa situação de “a vida lhe deu limões, faça uma limonada? Seria a “gota d’água” para um povo em catarse com a divulgação em tempo real de tantos desmandos na administração pública? Será que canalisamos, até inconscientemente, toda nossa decepção, frustação e desesperança com o Estado brasileiro neste evento? Quantos brasileiros, na situação do referido Magistrado, devolveriam tais valores? E, finalmente, o que é essa história de “legal”, mas “imoral”?

Poderíamos abordar este evento/tema sob inúmeras óticas. Percebi que muitos valeram-se do julgamento moral como instrumento de análise. É válido, porém, acredito ser improdutivo e, se não realizado com imparcialidade e despido de paixões, tende-se a ofensas pessoais de toda ordem. Não me apraz fazer ataques à pessoa do Magistrado e/ou do Poder Judiciário. Deter-me-ei em focar um aspecto, o qual considero relevante e o momento parece ser oportuno para abordá-lo: a natureza do serviço público e como remunerá-lo.

Em sua obra “A Arte de Ter Razão”, o filósofo Arthur Schopenhauer (1788/1860) elaborou 38 estratégias para vencer qualquer discussão, ainda que você esteja errado. Mostra como é possível você defender suas crenças, ridicularizar seus rivais e manipular as pessoas utilizando-se de técnicas. Não tenho tal intenção. Contudo, alerto para que conheçam esta pequena obra, uma vez que muitos “formadores de opinião” a utilizam para “vender” suas ideias ou fazer proselitismo. Embora tenham efeito até de curta duração, com as mídias sociais, reverberam no mundo virtual atingindo todo tipo de público, especialmente aqueles que consomem informações sem checar fontes ou aprofundar-se sobre o conteúdo.

O caso do vencimento do Magistrado trás à baila um dos mais complexos desafios para a administração pública: quanto deve perceber um servidor público? O valor nomimal dos proventos chamou a atenção de todos porque distoa em muito da renda média em um País como o nosso, onde pesquisas indicam que pelo menos 75% da população economicamente ativa recebe até 2,5 salários mínimos (cerca de R$ 2.342,00 brutos). Nesse contexto até é possível entender o clima de revolta por parte de praticamente todos os que se manifestaram de uma forma ou de outra.  Vamos em frente.

Em apertada síntese, na iniciativa privada os salários são formados através da lei da oferta x demanda. Competência, mérito e produtividade são requisitos definidores de salários no plano individual, contudo, ainda estarão sujeiros às variáveis existentes em um contexto econômico favorável ou desfavorável para o ente econômico. Ou seja, não adianta eu ser competente em minha empresa se ela não tem lucros para manter-se no mercado e vice-versa. Não há segurança de carreira, contudo, os níveis de ganho estarão limitados aos fatores já mencionados.

A ótica do setor público é outra. E aqui começam os problemas para entendermos esta dicotomia público x privado no Brasil. As leis de mercado que influenciam e perturbam os níveis salariais no mercado não atuam da mesma forma na administração pública. Esta necessita, dado a sua natureza, estabelecer limites teóricos, “tetos” remuneratórios para os servidores públicos. A lei orçamentária anual fixa a despesa e estima a receita, portanto, os proventos estarão inseridos neste contexto (ambiente de escassez). Pois bem, qual deve ser este parâmetro salarial? Como equilibrar a necessidade do setor público em atrair bom quadros e ao mesmo tempo não comprometer o orçamento com folha de pagamento? Como conter a pressão dos setores mais organizados e estratégicos da administração pública por aumentos de vencimentos? Não tenho respostas prontas, todavia, entendo que esta é a controvérsia que deve ser enfrentada pelos estudiosos do tema.

Longe de pretender oferecer a solução deste enigma, arvoro-me apenas em dizer que alguns paradigmas fazem parte deste fenômeno e devem ser levados em consideração nos estudos, mantendo-se o atual pacto federativo existente:

1- Os proventos dos servidores públicos devem ser objeto de escrutínio e juízos por parte de todos os pagadores de tributos;

2 - Necessidade de existência e manutenção de um “teto salarial” na administração pública (Art. 37, XI, CF/88[1]). Atualmente R$ 33.763.00.

3 - Proibição absoluta (sem exceções) de qualquer forma de extrapolação do vencimento paradigma (teto);

4 - Estudo racional e científico visando definir  valores salariais que não desestimulem a entrada no serviço público, mas, ao mesmo tempo, não estimulem a busca desenfreada pelo emprego público e, ainda, não criem folhas salariais que inviabilizem as políticas que o Estado tem que implantar e que dependem do orçamento como um todo;

5 - Ajuste dos planos de carreiras nos diversos segmentos da administração pública, trabalhando as amplitudes salarias ao longo da estimativa de carreira do servidor. Necessidade de evitar que servidores iniciem o serviço público com vencimentos próximos ao teto ou que cheguem a este com menos de 80% do tempo de serviço para inatividade;

6 - Redução da máquina pública através da incorporação de novas tecnologias que aumentem a produtividade do servidor, mitigando a pressão por aumento de cargos públicos;

7 - Eliminação de cargos desnecessários ou substituíveis por terceirização;

8 - Redução significativa dos chamados “cargos de confiança”;

9 - Redução do tamanho do Estado;

O Brasil precisa urgentemente deixar de ser um País de “faz-de-conta”. Precisamos aproximar o “legal” do “moral” (legalidade e moralidade são princípios da administração pública sem hierarquia). Temos boas leis que não são seguidas e leis ruins que precisam ser revogadas. A questão do teto salarial, acima comentado, tem previsão constitucional, mas foi flexibilizado pelo próprio judiciário. Se esse teto é inviável, que se discuta isso e não se arrume “gambiarras” ou “puxadinhos” para mascarar o problema. Em algum momento virá à tona e o resultado é exatamente este que estamos assistindo: instituições desmoralizadas, autoridades constrangidas, beneficiários sofrendo linchamento moral, população inconformada, desestímulo, generalizações etc.

Ainda sobre esta questão do teto, vale a pena lembrar as palavras do falecido Ministro Teori Zavascki em decisão de 2015: “No Brasil, precisamos colocar um ponto final nessa questão do teto. Estamos saindo por subterfúgios para fugir do comando do estabelecimento de teto remuneratório. Não chamamos mais de verba pessoal, mas de verba indenizatória. Está na hora da sociedade brasileira respeitar a Constituição”[2].

Percebi que muitas críticas dirigidas ao fato em questão utilizaram-se da primeira lição da obra de Schopenhauer (retromencionado), ou seja, foram generalizadas além dos seus limites naturais. Imputar todas as mazelas do País ao servidor público também não é acertado. Existe toda uma cadeia de eventos que levaram aos fatos. A máquina pública é um sistema extremamente complexo. São inúmeras as variáveis e forças que atuam e precisam ser levadas em consideração na formulação e implantação de planos de cargos e salários no serviço público. Os super-salários existem? Sim, é fato. Há sim que se corrigir as distorções e aprimorar o sistema.

Finalizando, quero destacar outro aspecto que considero de suma importância e ainda pouco compreendido tanto pelos atuais servidores públicos, quanto pela parcela da população que almeja ingressar em tais carreiras.

Em hipótese alguma, qualquer carreira do setor público pode prometer ou viabilizar o enriquecimento do servidor em níveis que não sejam matematicamente proporcionais à sua remuneração. Quem adentra ao serviço público, renuncia à riqueza material e opta pela segurança e uma vida simples, mas digna. Isso não quer dizer que o servidor não mereça rendimentos diferenciados pela competência e complexidade dos cargos. Claro que sim. Contudo, tais parâmetros deverão obedecer a variáveis racionais e que estimulem o servidor a doar-se à causa.

O serviço público tem um mister de “sacerdócio”. Deve ser vocacional. Ao ler o edital do certame o candidato não pode ser surpreendido com fatos inverossímeis. O plano de carreira estará ali exposto e ele decidirá pelo seu ingresso ou não, ciente de todo bônus e ônus. Existe o chamado “terceiro setor” constituído por organizações sem fins lucrativos e não governamentais, que tem como objetivo gerar serviços de caráter público. Pessoas dedicam parte ou mesmo todo o seu tempo laborando em tais organizações com rendimentos abaixo do que poderiam perceber em outros setores. Acredito que esta deve ser a tônica do serviço público. Aqueles com maior ambição material devem dirigir-se à iniciativa privada (como empregados ou empreendedores).

Pobre de uma nação onde todos querem ser servidores públicos. Dado que o Estado, por definição, não cria riqueza ou valor, sendo estes gerados pela livre iniciativa e a propriedade privada, não tenha dúvidas que esta será um nação sem futuro e prosperidade material. No Brasil, é assustador a demanda pelas carreiras da administração pública[3](inclusive com a “fuga de cérebros” da iniciativa privada pelas distorções do sistema). Isso é um indicador de que nossa economia precisa crescer para gerar emprego, renda e arrecadação, sob pena de colapso também na capacidade do Estado entregar seus serviços, os quais são realizados através dos servidores. Exemplos não faltam. Estados como Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul (e a própria União) estão com déficits nas contas públicas quase que “impagáveis”.

Que este evento mereça por parte das autoridades dos três poderes e de todos nós brasileiros a necessária reflexão.
 

Julio Cezar Rodrigues é economista e advogado (rodriguesadv193@gmail.com)

[1] XI - a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, (...), não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (...)
[2] Disponível em:
https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=6&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwj9wv2pxOTVAhUGSSYKHbeHD2gQFghCMAU&url=http%3A%2F%2Fguiadoestudante.abril.com.br%2Fblog%2Fatualidadesvestibular%2Fsupersalarios-ate-quanto-um-servidor-publico-pode-ganhar%2F&usg=AFQjCNEnv8tTTBQaTOdutcR8xUDHKRlJQQ
[3] O funcionalismo público, a drenagem dos cérebros, e os efeitos deletérios sobre a iniciativa privada (https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=7&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwj9wv2pxOTVAhUGSSYKHbeHD2gQFghIMAY&url=http%3A%2F%2Fwww.mises.org.br%2FArticle.aspx%3Fid%3D1787&usg=AFQjCNFJAu5XLVCXrNLNH_2JDhGFKjcrGA)
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