Olhar Direto

Quinta-feira, 28 de março de 2024

Opinião

Ética, uma pequena reflexão

Quando os gregos antigos se referiam a esta palavra tinham em mente como deveriam comportar-se para ter uma “vida boa”. Muitos humanos interagindo na “polis” certamente fez surgir a questão de como deveriam ser conduzidos os comportamentos ou por que determinados costumes deveriam ser mantidos ou desestimulados.

Por que devo agir desta forma e não de outra? Que forças me conduzem? Naturais ou sobrenaturais? É possível controlar as paixões? Deve a razão prevalecer sempre? Como se desenvolve as relações entre conduta humana, valores, virtudes e princípios? O que é o bem e o mal? Devo agir sempre pelo dever ou reflito antes sobre as consequências do meu ato? O certo e o errado já estão definidos transcendentalmente ou são construídos pela razão humana? Se a moral emana de uma divindade, caso ela não existisse, tudo seria permitido? Determinada conduta é boa porque deus a determina ou deus a determinou porque era boa? Sou livre para decidir ou tudo já está determinado? Existem condutas universalmente aceitas? O relativismo cultural justifica-se? Valores são subjetivos ou objetivos? Moral e ética são a mesma coisa? Existe progresso moral?

Todas estas questões encontram-se no escopo do ramo da filosofia conhecido como ética ou filosofia moral. Os gregos antigos foram os primeiros a conceber o estudo filosófico tal como o conhecemos hoje. As perguntas acima são como uma estratégia do Filósofo Sócrates (469 a. C.), o qual nada escreveu ou tampouco elaborou teorias (sabemos de sua existência via seu discípulo Platão), contudo, formulava perguntas insistentemente e, assim o fazendo, desenvolveu um método de investigação chamada de socrátido ou dialético (maiêutica). Disse o Mestre: “a vida irrefletida não vale a pena ser vivida”. Para Sócrates a moralidade estava indissociável do conhecimento, sendo este a única coisa “boa” existente, sendo a ignorância a coisa “má”, com efeito, deveríamos sempre “examinar” nossa vida na busca do bem.

Depois de Sócrates o debate sobre ética ainda está em aberto. Não resta dúvida de que trata-se de um dos temas mais complexos enfrentados pela nossa espécie. Independente do porquê, o “homo-sapiens” desenvolveu uma capacidade cognitiva que o diferenciou do restante da zoologia. Temos um cérebro que produz uma mente reflexiva, que gera uma consciência potente capaz de criar a noção de individualidade, de arbítrio e de pensar, aprender e gerar cultura. Estes atributos, somados à característica de vida gregária, permitiu que o “sapiens” desenvolvesse intrincadas teias de relacionamento, as quais foram ficando cada vez mais complexas. Assim, a história da humanidade é a história da nossa capacidade em criar “ordens imaginárias” e submetermos nossa vontade e práticas a tais abstrações. A procura pelo “certo” em contradição ao “errado”, do “bem” para evitar o “mal” despertou nas mentes mais poderosas o esforço para entender e compreender o “dever-ser”.

A bíblia judaica/cristã, ao narrar a criação do homem, ensina que, no princípio, após criar “ex nihil” tudo o que existe, Jeová/Deus “formou o homem do pó da terra” (Gn 2, 7) e o “colocou no Jardim do Éden para cultivar e guardar” (Gn 2, 15). Apenas uma regra ou “ordem” foi-lhe outorgada por Jeová: “de toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque o dia que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2, 16-17). Passado algum tempo, Jeová fez a mulher para companheira do homem (Gn 2, 23-24). Incentivada pela serpente, a mulher comeu do fruto e o deu também para o homem (Gn 3, 6). Tal fato despertou a ira de Jeová que aplicou punições severas ao homem, à mulher e à serpente (Gn 3, 14-19).

Citamos este conhecido trecho bíblico como forma de ilustrar um importante ensinamento ético. A liberdade nunca é absoluta. O “freio” da liberdade chama-se moral. Esta nos afasta da natureza. Os animais criados não receberam regras especiais que dependessem de deliberações, os instintos os guiariam. O homem e a mulher, diferentemente, além dos instintos, paixões e apetites, foram agraciados com a capacidade de decidir sobre fazer ou não fazer algo. A única regra (moral) determinada foi transgredida. A partir da transgressão, foram apresentados ao “mal” e ao “bem” na forma de “vergonha”, “mortalidade”, “trabalho”, “suor”, “sexo” e “homicídio”, antes desconhecidos.

Perceba leitor que não havia uma “árvore do bem” e outra do “mal”. Bem e mal são faces de uma mesma moeda. O desaparecimento de um implica na ascenção do outro e vice-versa. Morte, trabalho, prática sexual, homicídio e ervas daninhas vieram como castigos. “Conhecedores do bem e do mal”, tiveram os homens o primeiro referencial teórico para construir um ordenamento de regras (costumes) para, em tese, aproximarem-se do primeiro e afastarem-se do segundo. Como dizia a Pe Antonio Vieira “entre o conhecimento do bem e do mal há uma grande diferença: o mal conhece-se quando se tem e o bem quando se teve; o mal, quando se padece, o bem, quando se perde”.

Em verdade, a interpretação que faço desta alegoria bíblica é a de que o bem e o mal já estavam internalizados nos dois primeiros humanos. O fruto apenas “revelou” a capacidade de constatar tais atributos. A partir daí, a saga humana, como mortais, será a eterna luta entre estas potências. Esta capacidade, exlusivamente humana, em saber da existência, em potência, de tais condições e elaborar, com o uso da razão “pura” (Kant) a busca de práticas/condutas/ações que conduzam ao “bem” e afastem do “mal” é o que passamos a denominar de “ética”.

Nesse sentido, a ética religiosa das três grandes religiões monoteístas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo) revelam a existência de um “bem” e um “mal” que antecede o homem (conheceram a partir do fruto proibido) e são representados por Jeová/Deus/Alla como supremo “bem” e o diabo (do grego “diabolos”, que desune) como o “mal” em seu estado “puro”. Assim, resta ao homem utilizar-se do seu “livre-arbítrio” para deliberar sobre um ou outro. Ocorre que, a exteriorização do “bem” e do “mal” somente se dá pela conduta/ação humana e, esta ação deve, necessariamente refletir em um outro humano (direta ou indiretamente) para ser possível o julgamento moral.

Malgrado a epopéia humana haver iniciado como relatam os diversos mitos religiosos (cosmogonia) ou via um lento processo de evolução por seleção natural (ciência), não muda o fato de que idealizamos uma complexa cadeia de conhecimento por tentativa e erro que permitiram o mais elevado nível de cooperação entre todas as espécies animais. Legitimando (via religião e/ou razão) e definindo condutas que favoreciam a sobrevivência do grupo ao mesmo tempo em que desestimulava e punia aquelas que prejudicavam, chegamos ao extraordinário corpo de regras, valores e princípios atualmente existentes e que são norteadores de toda conduta humana, seja no plano individual, coletivo e de instituições.

Nesse sentido, à reflexão com o uso da inteligência e razão sobre este fenômeno denominamos de “ética”. Seu objeto de estudo, os costumes, as práticas e as regras chamamos “moral”. Todas as perguntas constantes do segundo parágrafo são respondidas através da dinâmica que envolve  o nosso conhecimento filosófico, empírico, histórico, social, econômico, cultural, científico e religioso acumulado ao longo da nossa trajetória de caçadores-coletores até homem moderno, estando ainda indefinido para o futuro. Destarte que, ainda nos dias atuais, convivemos com segmentos de populações em diversos estágios de desenvolvimento nas áreas citadas. Povos silvícolas e aborígenes que ainda não chegaram à idade dos metais e outros já vivendo em uma imbricada teia de cientificidade com projetos de criação de vida e inteligência artificial. Este fenômeno torna o campo da ética cada vez mais desafiador para nossa espécie, a qual já conseguiu o poder de auto-aniquilar-se (bombas termo-nucleares por ex.). Cada avanço na escala de progresso científico, gera um dilema ético que obriga a humanidade a refletir tendo sempre em consideração uma cadeia de eventos absolutamente fora de controle.

Como ensina o Professor Mário Sérgio Cortela de forma lúdica, “ética vem a ser o conjunto de valores e princípios que nós usamos para decidir as três grandes questões da vida: ‘Quero?’, ‘Devo?’, ‘Posso?’.Tem coisa que eu quero mas não devo, tem coisa que eu devo mas não posso e tem coisa que eu posso mas não quero”.

Posto que somos seres “condenados a fazer escolhas” (Sartre), aliado ao fato de que para cada escolha supõe-se renúncia a infinitas possibilidades e, ainda, a gama de responsabilidades advindas em consequência delas, têm-se a receita das fontes de angústia a que estamos fadados. Os “sapiens” sabem disso a milhares de anos.

Sob este prisma, as filosofias morais acabaram se dividindo em vertentes. Assim, fala-se em ética teleológica (finalidade) e deontológica (dever). Aquela, a busca pelo bem deve ser avaliado pelas consequências da conduta. Boa é ação que produz os melhores resultados. Dois campos de estudo desta ética dizem respeito ao “egoísmo ético” (Ayn Rand) e ao “utilitarismo” (Jonh Stuart Mill). De outro lado, a deontologia vai defender a validade do bem na conduta propriamente dita, independente de seus resultados. Assim o é, por exemplo, a filosofia moral de Immanuel Kant (1724/1804) e seu famoso “imperativo categórico”[1] ou então, a ética cristã com seus mandamentos. Com efeito, tanto para Kant como a doutrina cristã, “matar alguém” é sempre errado, independente das suas consequências. São códigos éticos extremamente formais e rígidos.

O drama humano, não tenho dúvidas, sempre foi vivenciar esta dinâmica do mundo ético. Na medida em que transformamos a natureza, igualmente esta também nos modifica. Cada interação de um humano com outro, ambos se transformam. É a “dinâmica dos afetos”, como diz o Professor Clóvis de Barros Filho. O advento das redes sociais fez surgir a necessidade de discussão de uma “ética para os relacionamentos virtuais”. O aumento da violência, faz renascer a “ética do porte de armas” para defesa pessoal. A escalada crescente dos crimes de colarinho branco e corrupção, a volta pelo estudo da “ética na política”. O progresso das ciências da computação com a inteligência artificial, indubitavelmente, forçará o tema de uma “ética sobre os limites de aplicabilidade dessa inteligência” e, assim, sucessivamente em todas as áreas de interação social, política e biológica a que estamos sujeitos.

A ética em um “mundo líquido” (termo criado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman  para captar a natureza da presente fase na história da modernidade) nos apresenta um desafio incomparável aos que nossos ancenstrais enfrentaram. Tenho convicção de que o campo de discussão deve estar emoldurado pelos limites (sim, há que se tê-los) representados pela tolerância à opinião contrária e respeito à individualidade e liberdade do outro. Qualquer modelo de pensamento que ignore ou atente contra tais valores, deve ser rechaçado intelectualmente. Portadores de verdades eternas e imutáveis, muito mal já praticaram neste mundo.

Como asseverou Roger Scruton, “herdamos coletivamente coisas admiráveis que devemos nos empenhar para preservar”. Resta-nos identificar aquilo que necessita ser conservado, mudar o que deve ser mudado e, principalmente, compreender e aceitar aquilo que não deve ser modificado. Razão e sabedoria são essenciais neste processo.

E você, já pensou sobre isso!
 

Julio Cezar Rodrigues é economista e advogado (rodriguesadv193@gmail.com)

[1] O imperativo categórico é uma decisão moral pautada pela razão e não por nossas inclinações, já que encerra o fim em si mesmo, é categórico porque diz "não faça x" e nunca "não faça x se teu fim é F". Por isto, não está vinculado a nenhuma particularidade, incluindo a identidade da pessoa, devendo ser aplicável a qualquer ser racional. Esta é a razão pela qual o imperativo categórico, em suas primeiras formulações, foi chamado "princípio da universabilidade"
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