Olhar Direto

Quarta-feira, 24 de abril de 2024

Opinião

​Zelito Bicudo - uma saudável recordação

Descia vestindo as ruas de Cuiabá um calçamento de paralelepípedo. O tempo não tinha pressa como hoje. Não existiam prédios e o sobradinho do Jair Cuiabano e o do meu pai eram os que davam o toque diferente,  marcando a arquitetura com ares de certa modernidade. Na verdade, contrastavam com os casarões da época, com suas portas e janelas avantajadas e, por sinal, sem grades, sempre plantados sobre coloridos e alegres mosaicos e perfilados diante das estreitas ruas e becos.
 
A praça Alencastro, ou simplesmente “jardim”, como era conhecida, representava o ponto alto e atrativo maior, onde a sociedade frequentava especialmente aos domingos, em movimentadas noites ao  som da gostosa  retreta e, onde nasciam os namoros entremeados pelas cantigas de roda da inesquecível “Preta”, figura de que guardamos fortes saudades. O sino do Padre  Osvaldo Venturusso lá do alto da Catedral badalava em acordes letárgicos, infundindo ainda mais os ares de Cuiabá, com uma sonorização melancólica e dolente. Tudo custava a passar, por isso, tudo era muito bem vivido.
 
Floresciam os quintais em pomares com frondosas mangueiras, cajueiros e goiabeiras e as frutas eram saboreadas  sem pressa. Naquele tempo a cidade não havia ainda fugido para os bairros, por isto todos viviam a cidade. O Jardim Alencastro cercado pelo Café Uganda,  Bar do Bugre, Bar Pinheiro, Restaurante de Michael Herane, Salão de Seu Miguel, cabeleireiro, era o lugar onde mais brincávamos e divertíamos.
 
Também desfrutávamos muito das ruas, pois, naquela época o trânsito possibilitava o animado joguinho de bola, bem como, o andar de bicicleta serpenteando as calçadas em vigorosas pedaladas para romper e vencer suas íngremes ladeiras. Eram tão poucos carros que até hoje guardo na memória a voz de D. Marianinha de Barros, zelosa parente e vizinha que pelo nosso apelido gritava vez por outra “Tetis olha o auto”!!
 
Mas, lembrando das ruas de Cuiabá de então, recordamos em especial das peladas, do acirrado e entusiasmado jogo de bola que sempre acontecia em frente a nossa casa, ao lado da residência dos governadores. Ocorre que, frequentemente, e para tristeza dos animados jogadores, volta e meia a bola era desviada do seu curso caindo no quintal do importante vizinho. Aliás, é bom registrar que a guarda civil que protegia a residência oficial  sempre advertia a todos quanto à proibição do jogo de bola naquela área. Mas, garotos sem refletir bem quanto as advertências e suas conseqüências, continuávamos a bater bolinha influída, pouco importando quanto as ameaças do poderoso que morava ao lado.
 
Até que um dia a guarda civil em operação-relâmpago, dando provas de operosidade acabou com o jogo, levando o dono da bola para a Chefatura de Polícia, e o pior apreendendo também a bola. Acompanhados por integrantes da guarda civil comparecemos à Chefatura localizada na Rua Barão de Melgaço, onde hoje está edificado o prédio do Banco do Brasil. Nele havia um corredor na entrada e a sala do Chefe era à esquerda, onde havia uma cortina de veludo musgo, bastante desgastada, com um brasão gravado indicando por certo a importância daquela repartição. Naquele recinto constatamos uma grande quantidade de policiais e uma voz estentórica fazia-se ouvir vindo daquela sala principal.
 
Trêmulo e bastante nervoso ao lado de dois guardas permanecíamos à espera do desfecho e decisão daquele importante chefe de polícia que nem mesmo conhecíamos. As lágrimas vinham aos olhos e estancavam cristalizadas, mais pelo medo do que pela falta de vontade de chorar. E aquela demora na expectativa pela solução do problema em muito contribuía para o aumento da  tensão e do quase incontrolável nervosismo.
 
Até que a porta do gabinete principal se abriu e o Chefe de Polícia do Estado apareceu, então, conseguimos, pela primeira vez, conhecê-lo. Era o Dr. José Paes Bicudo, conhecido como Zelito Bicudo, que investido de toda a autoridade inerente ao cargo ameaçava na nossa frente rasgar a bola e determinar prisão, caso houvesse reincidência. A sua voz grave, própria de autoridade diante do fragilizado contraventor, fez com que não conseguíssemos mais conter as lágrimas e acabamos de chorar o que de choro ainda restava.
 
Então o Dr. Zelito Bicudo face às emoções incontidas e movido pelo coração, sempre muito sensível diante daquele arrependimento claro e eficaz e das descontroladas lágrimas, determinou de imediato a devolução da bola e que um guarda civil nos levasse de volta para casa.
 
Este amigo e Chefe  de Polícia, passados alguns anos, veio a ser nosso professor na Faculdade  de Direito e na sala de aula, sempre que havia oportunidade, recordava deste episódio e sorrindo contava aos demais alunos o fato. Dr. Zelito foi daqueles homens bons por natureza, um Chefe de Polícia que valia a pena, pois humanizava os ares comandando a polícia pelo coração, naquele período em que em Cuiabá, pela quase falta de ocorrências, a Polícia se dava ao luxo de deter um menino pelo chute numa bola que desviada do seu colimado destino viesse a cair no quintal de um governador ou de algum outro figurão.
 

Teocles Maciel     
 
 
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