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Opinião

Esquerda e direita

Julio Cezar Rodrigues

Há tempos não se via no Brasil a velha rivalidade ideológica entre os partidários/defensores situados à “esquerda” e aqueles à “direita” do espectro político. Talvez o florescimentos das redes sociais tenha potencializado este debate, em certa medida porque esse novo canal de comunicação deu voz aos anônimos. Todos podem emitir alguma opinião, seja ela refletida ou simplesmente fruto de paixões ou ódio. A chegada ao poder de um partido de extrema esquerda (mas que precisou vender a ideia de ser de centro-esquerda para se eleger. Lembram-se da “carta ao povo brasileiro” do Lulinha “paz e amor”?) talvez tenha acirrado os ânimos e despertado no Brasil esse antigo conflito de visão de mundo, agora identificado entre os “coxinhas” e os “mortadelas” (uma alusão ao famoso sanduíche distribuído pelo partido para levar militantes às ruas).
 
O leitor encontrará na rede milhares de trabalhos e referências de toda ordem discorrendo sobre estes temas, além de excelentes bibliografias, portando, não teremos a pretenção de “ensinar” o que defendem seus ideólogos. O objetivo é mais humilde e visa simplesmente “despertar” no leitor a pertinência de se entender pelo menos um pouco o que pregam tais correntes, até para compreender as discussões políticas que ora enfrentamos no Brasil. Esta tensão entre esses polos ideológicos é muito mais sério do que os “memes” do whatsapp propalam. A depender de qual visão prevalecer, via sufrágio universal (2018 se aproxima), moldar-se-á o destino da nação, atrasando-a ou alavancando-a em direção ao desenvolvimento. Senão vejamos.
 
Em verdade, essa história começou em outro contexto. De acordo com a historiografia, os termos tão propolados atualmente como “esquerda” e “direita” surgiram durante a Revolução Francesa (1789). Na Assembleia Nacional formada, os partidários da monarquia ficavam à direita do presidente e os simpatizantes da revolução à sua esquerda. Todavia, tais grupos defendiam formas de organização social (partidários da monarquia e a nascente burguesia) que em nada tem a ver com aquilo que atualmente entendemos por “esquerda” e “direita”.
 
A primeira dificuldade em se trabalhar com tais temas ocorre em virtude da miscigenação de ideias que percorrem todo o continum deste espectro. Assim, existem várias “esquerdas” e várias “direitas”, inclusive com sérias discrepâncias e, em alguns aspectos, irreconciliáveis. Na lição do cientista político Norberto Bobbio “esquerda e direita indicam programas contrapostos com relação a diversos problemas cuja solução pertence habitualmente à ação política, contrastes não só de ideias, mas também de interesses e de valorações a respeito da direção a ser seguida pela sociedade, contrastes que existem em toda a sociedade e que não vejo como possam simplesmente desaparecer. Pode-se naturalmente replicar que os contrastes existem, mas não são mais do tempo em que nasceu a distinção”.
 
Veja-se, por exemplo, o contraste entre a direção a um estado menor, mais enxuto (mínimo), identificado com uma das bandeiras da direita liberal, mas que vai de encontro à ideologia das esquerdas, as quais postulam desde o estado socialista/comunista (visão da extrema esquerda) até a social-democracia (centro-esquerda). Nesse contexto, identifica-se o acirramento entre propostas de reforma previdenciária, política e tributária. Outros temas como desarmamento, política de cotas, união homoafetiva, identidade de gênero, reforma agrária, financiamento estatal, moradia, saúde, segurança pública, sistema penal, juros da dívida etc, sofrem a ação dessas forças ideológicas. Com efeito, elas pressionam e comprimem a disputa política na formulação de leis e aplicação de recursos públicos visando contemplar uma ou outra dessas “visões” de mundo.
 
A esquerda tem como principal fonte teórica os trabalhos de Karl Marx e seu “socialismo científico”. Assim, por definição, possui um viés coletivista, “social”. Postula uma visão de primazia para o grupo social em detrimento do indivíduo. Busca “justiça social”, “igualdade material” etc (a palavra “social” é parte da retórica em qualquer tema). O estado desempenha papel preponderante neste processo, sendo o indutor e principal fomentador de políticas de direitos sociais que conduzam a nação neste caminho. Com a Revolução Bolchevique em outubro de 1917 na Rússia, as esquerdas tiveram, na prática, a efetivação das ideias de Marx (ditadura do proletariado). O final dessa história todos conhecem. Como não preza o “indivíduo”, tais regimes, em nome do estado ou por acreditarem ser possível modelar a sociedade e transformá-la, esmagam e eliminam (expurgam) quantas pessoas forem necessárias (estima-se em mais de 50 milhões de mortos na Rússia sob Stalin). Um aspecto importante que devo destacar é que, embora divergentes, as esquerdas não são incompatíveis entre si, assim, tanto os chamados “radicais” (socialistas/comunistas) quanto os moderados (defendem a democracia como meio para o socialismo) convivem e se suportam em nome de um objetivo de longo prazo (vide como as esquerdas aqui no Brasil não repudiam o Governo ditatorial na Venezuela).
 
Isso não quer dizer que as direitas são “santas” e não cometem suas atrocidades. Ditaduras de direita foram implantadas em diversos países ao longo do século XX. Quanto ao nazismo e ao fascismo, ainda persiste uma discussão acadêmica se foram ditaduras de esquerda ou direita (particularmente posiciono-me que foram de esquerda). Trataremos disso em outra oportunidade. Interessa-nos, pelo amor ao debate, defender que, à direita do espectro político, existe um viés de importância ao “indivíduo” e de respeito às liberdades individuais, à propriedade privada e à defesa da vida como um fim em si mesmo. Tais valores tornaram possíveis a existência dos modernos estados de direito. Existem setores à direita que defendem a extinção do estado (anarco-capitalistas), outros o “estado mínimo” (escola austríaca de economia) e os “keynesianos” ( defensores da intervenção estatal ou da economia dirigida). Diferentemente das esquerdas, essas correntes de pensamento à direita, são incompatíveis entre si. Anarco-capitalistas não concordam com keynesianos e estes debatem à décadas com postulantes do estado-mínimo e assim por diante.
 
Voltando ao Brasil, conforme já discorri em outro artigo (ver “O brasil e seus partidos políticos” aqui neste site) o modelo de multipartidarismo trouxe uma verdadeira “salada” ideológica na representação partidária. Além de confusos, seus estatutos trazem conceitos incoerentes e de difícil compreensão ao pública leigo. Mas este não é o principal. Os partidos são feitos por indivíduos (os filiados) sendo alguns destes escolhidos para disputarem cargos públicos nos poderes executivo e legislativo. O sistema político, da forma como está arquitetado hoje, permite a existência de inúmeras siglas partidárias criadas exclusivamente para negociarem tempo na TV e/ou abocanharem recursos do fundo partidário. Como disse certa vez Eduardo Kassab (fundador do PSD) “este partido não é nem de esquerda nem de direita”. Pelo menos não foi hipócrita. Nossos políticos, salvo raras exceções, transitam entre uma sigla partidária e outra com extrema naturalidade, migrando de um partido de esquerda ao de direita e vice-versa.
 
Em uma democracia, o cidadão precisa aprender a identificar os discursos. As esquerdas possuem suas estratégias retóricas para comunicar seu desiderato. Você dificilmente ouvirá um político de esquerda defender o modelo comunista bolchevique da revolução russa. É possível até que ele se identifique como um crente (embora, por definição, regimes comunistas são ateus). Ao mesmo tempo, você também não o ouvirá atacar frontalmente tais tentativas totalitárias, tampouco, irá fazer moção de repúdio aos frequentes atentados contra os cidadãos que algumas nações, ainda sob regimes socialistas radicais praticam (vide Cuba, Venezuela e Coréia do Norte por exemplo). Como afirmei acima, as esquerdas não são incompatíveis. Em sua essência, compartilham o mesmo DNA totalitário.
 
Igualmente, a direita que defende o estado forte, que permite a livre iniciativa mas, ao mesmo tempo, intervém fortemente na economia e nas liberdades individuais de expressão, pode intentar uma falsa soberania ao cidadão e ficar a um passo da tirania.
 
Enfim, o leitor deve estar se perguntando: diante desse quadro complexo, qual o melhor arranjo? A resposta não é fácil. Existem pessoas bem intencionadas que defendem modelos de sociedade baseada em ideais de liberdade, igualdade, fraternidade, justiça social e condições materiais dignas, contudo, os caminhos que oferecem para a conquista de tais valores são questionáveis.
 
Sou postulante e defensor dos direitos naturais (vida, liberdade, propriedade). Acredito que o ser humano (como dizia Kant) é um fim em si mesmo (princípio da dignidade da pessoa humana). O Estado deve existir com o propósito único de garantir esses direitos, cujos deveres constituem em prestações negativas (não fazer) aos outros seres humanos.
 
Posiciono-me pela garantia de um ambiente de liberdade, alicerçado em valores conservadores no sentido colocado por Roger Scruton (filósofo inglês)[1] de que devemos defender as coisas admiráveis que herdamos coletivamente. Com efeito, devemos lutar para que nenhuma espécie de regime político ameace o direito natural de vivermos nossas vidas como desejarmos ou nos aprouver; a garantia e a segurança da lei imparcial; a proteção do nosso meio ambiente como um recurso natural compartilhado e que não pode ser apoderado ou destruído de acordo com o capricho de interesses poderosos; a manutenção de uma cultura aberta e questionadora que molde nossas escolas e universidades para o respeito às instituições; a manutenção dos procedimentos democráticos que nos permitem eleger nossos representantes a aprovar as próprias lei e tantos outros temas tão caros à nossa sobrevivência com dignidade.
 
Portanto, encerro asseverando que esses valores devem estar acima de modelos sociais de organização, ou melhor ainda, a arquitetura social a ser implementada deve ser “construída” com a “argamassa” da liberdade, os “tijolos” da vida e a “cobertura” da propriedade privada adquirida com esforço próprio e no sistema de respeito aos contratos.
 
 
Julio Cezar Rodrigues é economista e advogado (rodriguesadv193@gmail.com)

[1] ROGER, Scruton. Como ser um conservador. Record. 2016.
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