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Opinião

​O transporte é público, o corpo é meu

Gisele Nascimento

Para viver em sociedade, todos devem respeitar limites e cumprir obrigações, para que todos tenham direitos. Há um pacto silencioso, de natureza profundamente ética, mas garantido pelas leis, que se pode resumir no adágio popular que diz que o seu direito termina onde começa o meu.

É revoltante ter algo nosso arrancado de nosso poder sem consentimento. Afinal, somente nós devemos ter o poder de decidir o que fazer com a coisa que nos pertence.

Numa escala um pouco mais desrespeitosa e inadmissível está o ataque à nossa pessoa, como a agressão injusta à reputação de que desfrutamos na comunidade em que vivemos, ou na sociedade de forma mais ampla. Este tipo de violação de direitos está positivada em nosso ordenamento jurídico na forma dos crimes de calúnia ou difamação, cada um deles dependendo das circunstâncias da situação concreta.

Quanto mais se avança no sentido da privacidade e intimidade, mais cresce a repulsa pelo desrespeito que alguém possa lançar sobre o outro.

À época em que cursava Direito em Cuiabá me vi envolvida num episódio que me causou muito nojo e indignação. Assim como tantas outras mulheres Brasil afora, fui vítima de assédio sexual dentro do ônibus que utilizava para ir à faculdade.

Quando tomei conhecimento do fato dantesco ocorrido em São Paulo, eu revivi aquela cena horrenda e surreal, sentindo muita empatia com a vítima. Pude imaginar o nojo que aquela mulher deve ter sentido, pois em minha experiência, ainda que em muito menor escala, me senti muitíssimo abalada e desprotegida. Humilhada, para dizer o mínimo. Lembro-me que cheguei à faculdade chorando muito, necessitando ser socorrida por um amigo.

Esse tipo de comportamento inaceitável é claramente episódio de violência sexual contra nós mulheres e aqueles que assim se portam devem ser severamente punidos.

Para se ter ideia do ultraje vivenciado por aquela moça em São Paulo, basta pensar se o agressor gostaria que isso lhe acontecesse, na posição de vítima! Imagine-se,

caro(a) leitor/leitora, se isso ocorresse contigo ou com uma pessoa de sua família, em plena luz do dia, num ambiente público...

Todos devem se lembrar de como a história foi “resolvida” em São Paulo: o juiz liberou o ejaculador, que havia sido preso anteriormente, como se ejacular em público fosse um comportamento normal, ainda mais porque o fez em cima de outra pessoa.

E o juiz o fez por considerar conduta atípica, ou seja, comportamento social que não encontra repreensão prevista em lei como crime, senão na Lei de Contravenção Penal, que é muito mais branda que um crime.

Não há dúvida de que o nojo causado pela abominável conduta foi geral. E não podia mesmo ser diferente.

Por sua decisão, muitas críticas foram lançadas contra o magistrado, que, ao que me parece, como advogada, agiu corretamente, do ponto de vista técnico. Mas a aceitação como profissional do Direito, não me tira o direito de me indignar pelo fato em si, agora na condição de mulher. Absurdo inominável foi o que ocorreu.

Mas, o que pode ser feito para que casos semelhantes não voltem a ocorrer?

O tema é complexo. Envolve circunstâncias e pormenores de vários campos do conhecimento humano, tarefa a que não me atrevo, mas que arrisco alguns comentários superficiais.

Primeiramente, temos que considerar que os valores éticos tradicionais encontram-se subvertidos na atualidade. Ainda que se admita que cada sociedade estabelece os padrões morais com que aceita conviver, parece ser mais ou menos óbvio que um mínimo de decência e respeito há de se exigir de seus membros, para que não voltemos aos tempos da barbárie.

Em segundo lugar, há também obviedade no fato de que o Direito não pode (e não deve) se ocupar em prever todas as infinitas possibilidades de condutas humanas, estabelecendo punição para todas que não tolere.

Também não se pode esquecer que a natureza humana comporta algumas virtudes e muitos defeitos.

Por tudo isso, é que se deve pensar numa solução possível para casos semelhantes ao descrito, o que necessariamente deve passar pelo campo do Direito Penal, sem esquecer que a mudança de cultura, como em qualquer outro caso de índole social, merece destaque e implementação na seara própria.

No caso específico de São Paulo, que não difere muito de inúmeros outros que ocorrem no dia a dia deste Brasil afora, temos que pensar que, se por um lado não se

pode “botar na cadeia” uma pessoa sem que o ato que ela pratique esteja previamente definido na lei como crime, por outro lado, não se mostra aceitável que alguém se julgue no direito de emporcalhar uma pessoa indefesa com seus excrementos, sem que receba algum tipo de repreensão, à altura de sua conduta execrável.

A satisfação da luxúria de alguém não pode ser obtida com a desgraça e humilhação de outrem.

Muito se critica os legisladores que agem impulsionados pelo que dê notoriedade e popularidade no momento, com a criação casuística de lei para um caso específico de grande repercussão, como tantos já ocorridos (Lei Carolina Dieckmann, Lei Maria da Penha etc), mas não parece haver dúvida de que alguma providência precisa ser tomada, sob pena de enxovalhar a dignidade da pessoa, supremo fundamento da República brasileira.

Neste contexto, mostra-se oportuno e apropriado que alguns parlamentares estejam elaborando projetos de lei para criminalizar tal tipo de conduta, sendo que a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou no dia 27 de setembro do corrente ano, dois projetos de lei que têm por objetivo punir casos semelhantes ao descrito neste artigo.

Uma das propostas de autoria do senador Humberto Costa (PT-PE) cria o crime de constrangimento ofensivo ao pudor, que consiste, em síntese, em constranger, molestar ou importunar alguém de modo ofensivo ao pudor, mesmo que não haja contato físico, atentando contra a dignidade sexual da vítima. Se a conduta ocorrer em ambiente aberto ao público, inclusive em transporte público, a pena inicial de reclusão de 2 a 4 anos será aumentada.

A segunda proposta, de autoria da senadora Marta Suplicy (PMDB-SP), tipifica o crime de molestamento sexual, com pena de reclusão de 2 a 4 anos para o agente que constranger, molestar ou importunar alguém mediante prática de ato libidinoso, realizado sem violência ou grave ameaça, independentemente de contato físico.

Pois bem.

Tais propostas me parecem um sinal razoável de reação diante de tamanho descalabro. Sendo a dignidade da pessoa valor tão elevado na ordem constitucional, não se mostra admissível que atos tão ofensivos e aberrantes, com graves repercussões para a saúde mental e autoestima da vítima, sejam enquadrados como mera contravenção penal, denominada de importunação ofensiva ao pudor, cuja sanção prevista em nosso ordenamento pátrio é de multa.

Ora, multa deve ser aplicada diante de uma infração de natureza administrativa, não contra uma violação pública do direito à privacidade, á intimidade. O vilipêndio da alma não se cura com multa.

Sigo acompanhando o desenrolar dos trâmites dos aludidos projetos na esperança de que se tornem leis. Quem sabe assim nosso sistema jurídico positivo comece a se tornar menos machista.

Sobre a autora:

Gisele Nascimento, Advogada em Mato Grosso, sócia do escritório Alves, Barbosa e Nascimento Advogados Associados.

Especialista em Direito Civil e Processo Civil e pós-graduanda em Direito do Consumidor.

Membro da Comissão de Defesa da Mulher OAB/MT.

Contato no Instagram: @giselenascimentoadvogada
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