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Opinião

A Desigualdade Ameaçadora

​Mário Lúcio de Avelar

A crise econômica iniciada em 2008 e a permanente reprodução de seus efeitos sociais sobre amplas parcelas da humanidade reintroduziu na agenda política mundial o tema da desigualdade. Uma profusão de números sugerem que, já em 2015, quase metade de toda a riqueza das famílias do mundo foi apropriada pela parcela de 1% mais rica da população da mundial, e que apenas 62 pessoas possuíam o mesmo que a metade inferior da humanidade.

De maneira gradual, os dados indicam que as desigualdades se espalharam para todas as partes do globo, mas em graus e intensidades diferenciadas em termos comparativos. Desde 1980, a desigualdade de renda aumentou rapidamente na América do Norte e na Ásia, cresceu moderadamente na Europa e se estabilizou em um nível extremamente alto no Oriente Médio, na África subsaariana e no Brasil.

De fato, os indicadores apontam que o Brasil, ao lado da Colômbia e Índia, registra um dos piores níveis de desigualdade de renda, se comparados com os países do Norte. Os números falam por si, dado que apenas os seis maiores bilionários brasileiros têm a mesma riqueza que os 100 milhões mais pobres.

O tema é candente e desperta a atenção crescente dos governos, do setor privado, dos líderes da sociedade civil e de cidadãos de todo o mundo. Em uma de suas últimas viagens internacionais à frente do cargo, o Presidente Barack Obama afirmou na Grécia que "a desigualdade constitui neste momento um dos maiores desafios para as nossas economias e para as nossas democracias".

As palavras do então presidente norte-americano convergem para um consenso quanto à importância do tema. A redução da desigualdade é mais que uma questão de equidade e justiça social. Ela é a chave para a erradicação da pobreza extrema, construção da sustentabilidade ambiental, promoção do progresso social e governança inclusiva. No caso do Brasil em particular, sem a melhora dos indicadores da igualdade também jamais eliminaremos a chaga da violência que nos faz uma nação em permanente estado de guerra, onde 61,6 mil morrem todos os anos em decorrência de homicídios, latrocínios e lesões seguidas de morte.

A notícia boa, porém, é que o Brasil e o mundo mais do que nunca dispõem de ferramentas políticas aptas a melhorar a renda da população e diminuir a desigualdade de renda e riqueza que afetam centenas de milhões de pessoas em todo o planeta. A pobreza e a má distribuição da riqueza não são produto da ação divina, tampouco uma etapa do desenvolvimento econômico. Ela é antes de tudo uma escolha política.

O histórico comparativo da produção, dos mercados e da distribuição da renda nos países desenvolvidos (Canadá, França, Alemanha, Itália, Espanha, Reino Unido e EUA) demonstra que o problema da desigualdade foi fortemente enfrentado após a segunda guerra mundial mediante a instituição do estado do bem estar social e políticas distributivistas.

Como resultado, os estudos apontam que a participação de 1% da população mais rica na apropriação da renda anos após o fim da segunda guerra mundial era relativamente pequena quando comparadas com a situação anterior, em todo o ocidente desenvolvido.

Todavia estes números sofreram mutação. A participação dos mais ricos no conjunto da renda aumentou significativamente nos EUA a partir de 1980 com a adoção de políticas afinadas com os ideais do liberalismo econômico. Em números relativos, a concentração de renda e riqueza cresceu comparativamente menos na França, Alemanha e Itália.

Em todos os casos, as políticas tributárias e de gastos públicos tiveram papel importante na redução da desigualdade. O alcance e a extensão destas políticas, porém, variaram de país para país, sendo em menor grau nos EUA e em maior na França e Alemanha. Trocando em miúdos, a concentração da renda aumentou substancialmente nos Estados Unidos, e nem tanto na França, Alemanha e Itália.

A existência de políticas públicas aptas a alterar o crescente processo de desigualdades, todavia, nem sempre encontra terreno propício à sua implementação. De forma invariável as elites privilegiadas nos diversos países encontram diferentes respostas para a sua conformação. Segundo Sérgio Gobetti, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), no caso particular do Brasil a desigualdade não foi revertida à conta de dois motivos básicos. "Há muito desconhecimento sobre a matéria por aqui, e o poder público é mais capturado pelas elites, o que faz com que os interesses do poder econômico impeçam essa mudança", diz.

De fato, por aqui há sempre a tendência de empurrar os malefícios dos ajustes econômicos para os mais pobres. Quem duvida disso deveria observar de perto o ajuste fiscal promovido pelo governo do presidente Michel Temer. Especialistas dizem que ele tem o poder de elevar ainda mais a desigualdade no Brasil. Sem dúvida, o congelamento das despesas públicas por 20 anos tende a impactar mais negativamente os mais pobres que já ressentem a falta de verbas para a saúde, educação e assistência social.

A questão, porém, não para aí. O Brasil tem sobretudo um sistema tributário regressivo, que tributa os mais pobres. Na prática isto significa que quanto maior a renda menor são os impostos que se recolhe. De fato, há isenções para rendas de capital, como os dividendos pagos pelas empresas a seus acionistas. Por outro lado, impostos sobre rendas mais altas e heranças têm alíquotas muito baixas no Brasil, se comparadas com os países mais avançados.

De acordo com economista Rodrigo Orair, um dos organizadores do livro "Tributação e Desigualdade" (ed. Letramento), "o Brasil está na contramão da tendência mundial, que é diminuir a carga tributaria sobre pessoas jurídicas e aumentar seu peso sobre pessoas físicas de maneira que os mais ricos paguem mais impostos. Por aqui, tributa-se menos renda e propriedade e mais bens e serviços.

Para José Roberto Afonso, professor do Instituto de Direito Público e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia na FGV-Rio, isso "acaba penalizando aqueles que proporcionalmente mais consomem, ou seja, as famílias mais pobres. Pior: isso é feito de forma invisível e inevitável, com tributos embutidos nos preços". Assim – diz –, os 10% mais pobres do país gastam 32% de sua renda em tributos, a maior parte deles indiretos (sobre bens e serviços), os 10% mais ricos gastam 21%.

Como o último país do mundo a abolir a escravidão, a resistência às reformas capazes de propiciar uma melhor distribuição da renda e da riqueza sempre foram bem sucedidas aqui. O processo distributivo, porém, não se deu sem traumas em nenhum dos países do hemisfério norte. Nos Estados Unidos e países europeus o rompimento das barreiras que impediam o combate à desigualdade decorreu da irrupção de movimentos violentos e a da eclosão de duas grandes guerras mundiais.

Grandes catástrofes são um poderoso mecanismo de redução da desigualdade. Talvez, o único. É o que argumenta Walter Scheidel, pesquisador da Universidade de Princeton, no livro The Great Leveler: Violence and the History of Inequality from the Stone Age to the Twenty-First Century (O Grande Nivelador: violência e a história da desigualdade da idade da pedra ao século 21, numa tradução livre). A tendência natural da sociedade é pelo aumento da desigualdade. E a única maneira de reverter esse processo é com algum evento traumático de grandes proporções — guerras, revoluções, colapso do Estado e epidemias.

Com muita riqueza de dados e detalhes, Scheidel percorre a história da humanidade mostrando como isso se repete, analisando o fim do Império Romano, a peste negra, a Revolução Francesa, as revoluções comunistas e as guerras mundiais.

Para ele, em tempos de paz e tranquilidade, interesses poderosos manipulam a sociedade para ampliar a sua parte do bolo. Historicamente a fusão entre o poder que cria riqueza e a riqueza que cria o poder somente foi rompida com conflagrações violentas. Nessa construção, o evento mais "benigno" de redução da desigualdade foi a Grande Depressão dos anos 30. As políticas que ensejou teriam possibilitado a oportunidade de construção sociedades menos desiguais.

Mais e mais pesquisadores têm alertado para a necessidade da construção de políticas públicas de enfrentamento da desigualdade no Brasil e no mundo sem arroubos e sobressaltos. Se não formos capazes de avançar na construção desta agenda, dificilmente conseguiremos resgatar a democracia da crise e trazer de volta a confiança da população na política. Em meio a mundo crescente de incertezas, exclusão e pobreza é cada vez maior o risco, aqui e lá  fora, da  eleição de  governantes que, em nome da democracia e do combate aos privilégios, venham justamente eliminar a primeira e consolidar a segunda. É preciso estarmos atentos.


Mário Lúcio de Avelar, procurador federal da República
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