Com a vitrola dançando sobre o disco, a sua primeira neta, Júlia, uma pequena criança com olhos curiosos e questionadores, se encantava com os vinis de chorinho apresentados pelo avô, que lhe abriram um mundo novo de imaginação. Um amante da música, da literatura, da poesia e das artes em geral, Zelito Bicudo (1922-2000) incitava o amor à criatividade em todas as suas formas. Um homem excepcional, arrisca a adjetivar o pai, a filha mais velha Verônica. Um homem que acreditava que abrir as portas para novos universos não só era possível, mas necessário.
Uma vida riquíssima em múltiplas experiências. Um homem à frente do seu tempo: saiu de Santo Antônio do Leverger, sua cidade natal, para estudar Direito no Rio de Janeiro (coisa rara para a época), e acabou ficando por lá por 20 anos. Foi delegado da Barra da Tijuca e diretor de censura tendo trabalhado durante o governo de Getúlio Vargas. Retornou à Cuiabá para atuar como secretário de Segurança no governo de João Ponce de Arruda.
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As memórias dos familiares revelam a sensibilidade única deste homem que criou o hino de Santo Antônio do Leverger, figurou entre os compositores do rasqueado cuiabano e incentivou a cultura e a arte como pode, principalmente, aos que estavam sempre perto de si. Outras composições como “Cuiabá dos meus amores” e “Garota Poconeana” marcaram a vida de Zelito.
São muitas recordações: caixas e mais caixas de memória que estão guardadas. Verônica explica que mexer neste passado causa uma emoção muito profunda (irão se fazer 14 anos desde a morte do pai), mas, ao falecer, Zelito deixou muitos escritos, são poemas, contos e músicas (um espólio que deve possuir verdadeiros tesouros).
Era um contador de ‘causos’. Viveu muito e perpassou por diversas experiências. Lá do Rio de Janeiro contou para a filha Verônica como um homem matou um ladrão que entrou em sua casa, ao se abaixar para ‘calçar’ o chinelo e pegar um revólver de duas balas e disparar contra o infrator. Zelito se assustou com o sangue frio.
Talvez tenha se assustado com a crueza humana por possuir dentro de si, um sentimento forte de acreditar na vida que permite tanta beleza e arte.
Lia dois livros ao mesmo tempo, podia ser política e romance, e os terminava em uma semana. Sua leitura acabava sendo antagônica, assim como sua vida: trabalhou como promotor e procurador-geral do Estado, atuava no Ministério Público, gostava de debater política, mas não queria atuar nesse campo. Era especialista em direito do trabalho, e quando se aposentou começou a ensinar pupilos, um desses é o atual procurador-geral do Estado, Paulo Prado.
Foi um dos fundadores da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) onde ministrou aulas de direito, e era conhecido como professor Cátedra. Era amigo de Silva Freire e Aníbal Bouret (os três mosqueteiros inteligentes de Cuiabá). Também foi amigo de Rubens de Mendonça, um dos maiores historiadores do Mato Grosso. Por isso, colecionava muitas histórias e estórias. Vivia em um mundo fantasioso, mas ao mesmo tempo, realista, com os pés no chão. Queria abrir as portas para todas as possibilidades.
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Mas sua paixão nas artes não se limitava só a música e a literatura. Ia muito além, cultuava a cultura global e regional em todas as suas formas. Era um apaixonado por cinema. Verônica recorda do primeiro filme de Charles Chaplin que viu com o pai, que a acordava nas madrugadas para ver os clássicos que passavam na TV. À época como diretor de censura no Rio de Janeiro, pode ver muitos filmes nacionais e internacionais.
E Zelito Bicudo me parece assim: contemplativo, sério porém sereno, e imaginativo, com estórias guardadas na cartola que se encaixavam em cada situação. Gostava muito dos ribeirinhos, e toda a família era do “Rio Abaixo”. Colecionava antiguidades, até aquelas que encontrava nos quintais das casas cuiabanas. E imagino que com toda sua reverência, transcorria Cuiabá como se a cidade fosse completamente sua.
Com o ritmo do rasqueado na cabeça, e as letras que corriam soltas e se formavam em rimas, Zelito Bicudo não era só advogado: era um poeta, um artista, um espírito livre que encontrou a arte e o amor, nas margens do rio que tanto venerou.