Olhar Direto

Quinta-feira, 28 de março de 2024

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PArque Geórgia

O retrato do descaso público na história de dona Ana Maria e seus 9 netos

Foto: Rogério Florentino Pereira / Olhar Direto

O retrato do descaso público na história de dona Ana Maria e seus 9 netos
A realidade do bairro Parque Geórgia é o retrato do descaso e irresponsabilidade pública. Como ele, existem milhões pelo Brasil, cheios de donas Ana Marias: mulher humilde, semi alfabetizada, idosa e marginalizada que tem como alegria na vida a companhia dos netos de quem se faz mãe. 

 
Há quase um ano e meio eu visitava a casa de dona Quitéria, vizinha de Ana Maria no Parque Geórgia. Duas mulheres que tem nas dificuldades da vida suas semelhanças. Neste retorno, depois até de uma eleição municipal, nada mudou para os moradores do bairro: o esgoto ainda sangra a céu aberto nas “ruas” estreitas de terra batida; dividido em lotes, tem seus terrenos tomados pelo mato e pelo lixo. Por conta da sujeira, o mau cheiro é constante e as moscas e mosquitos estão por toda a parte.

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Assim que o carro da reportagem do Olhar Direto parou na esquina da rua, saí do carro e avistei duas crianças brincando: jogavam na água uma pedrinha amarrada a uma linha e então puxavam de volta. A poça em questão era de esgoto. As crianças descalças, apenas vestidas com um short, pareciam habitar uma realidade paralela em sua inocência.

A primeira parte da casa de dona Ana Maria é de alvenaria e pela lateral foi que eu me dirigi para encontra-la. A entrada é feita pela parte de trás da casa, uma porta entre o vão que separa o quarto/sala da segunda parte da casa: cozinha – um barraco de madeira. Por esse entre casas vê se o terreno baldio do outro lado: tanto lixo que é difícil descrever a situação insalubre.
 
Ali a céu aberto, sou recebida pelos cabelos brancos escondidos debaixo de um boné. Com gentileza, Ana Maria me oferece um lugar no sofá verde-limão, forrado com um lençol branco e então começo a minha conversa, que durou mais de hora, sob os olhares curiosos dos netos. Ao fundo, o som da água onde um deles dava banho em outro num tambor compõe o ambiente.


 
“Aqui ninguém tem documento do terreno. Não temos rede de esgoto e já batemos cabeça, cara, nós já fomos, já chamamos. Eu tenho medo uma criança dessas, eu passo o dia inteiro correndo atrás pra não ir na água de esgoto.
 
Seus olhos ágeis por vezes não me olhavam e pareciam encarar suas próprias memórias, que compartilhava comigo. Na pele enrugada e queimada pelo sol a evidência do passar dos anos e de uma vida inteira de trabalho duro como catadora de latinha e empregada doméstica.

Como observado, todos os atributos físicos remetem ao poder de seu interior e história de vida. À mim ela conta que é viúva e por isso dá graças a Deus. Como muitas mulheres ela é mais uma que foi agredida pelo marido. Apesar disso, ela diz que nunca abaixou a cabeça e acha que por isso as coisas não foram piores.
 
“Eu sofri muito, por isso que quando ele morreu eu não quis mais homem na vida. Já levei um soco no olho. Não me batia mais porque eu enfrentava, mas se eu fosse uma mulher que não falasse nada”.
 
O preconceito é seu companheiro indesejado e por mais ignorado por ela que seja, ele existe nos olhos dos outros. “Hoje em dia você vê, eu falo pra eles, quem não sabe ler é humilhado pra caramba. Uma vez que eu fui ser babá e como eu não sabia ler a mulher não queria me contratar, só que eu não sou burra, ninguém me passa para trás, juntando e soletrando eu consigo ler. Só que ninguém quer dar serviço pra mim, pensam ‘a ela está de idade, vai cair’. Quando cheguei lá, conversamos e ela perguntou minha idade ai falou que ia ligar pra uma menina e disse que a menina ia lá, mas passei lá depois e ainda tinha placa dizendo que estava precisando de empregada. Não é querendo me gabar não, mas eu faço o que menina nova não faz não”.
 
Apesar disso, em sua humildade ela agradece pela vida que tem e as pessoas que a ajudam quando podem, com alimentos, roupas e atenção. Veja bem, aqui não estamos falando do poder público, porque este segundo ela, nunca lhe fez uma visita, a não ser em tempos de eleições. “Não recebo. Veio umas pessoas fazer cadastro daquela “panela Cheia”, mas eu nunca recebi, só que lá consta que eu recebia, ai cortaram”.
 
“Você não vê um vereador vir aqui, só no tempo de eleição eles vem pisar na lama, ai você vê, a gente tá até sujo de lama, deitado na lama e eles vem e abraça. Pra que isso? acho que tem que olhar pra gente também fora do tempo de eleição. Quanto é que tão roubando da gente? A gente compra uma caixa de fósforo e já paga imposto. E são muitos bairros aí que estão nessa situação. Precisava fazer uma rede de esgoto, arrumar essas ruas. Se der uma chuva você não passa aqui. Queria que melhorasse meu bairro”.

Como se pode ver, nem a miséria social é capaz de esconder a nobreza de ser e a inteligência da vida. Com clareza e lucidez no dizer, a senhora de 61 anos relata sua indignação com a situação do bairro.
 
“Aqui ninguém faz nada, você vê esse bairro era pra ser bom, arrumaram lá em cima, mas daqui pra cá não vem, quando chove que dá enchente e o rio enche você passa de canoa, desce tudo que não presta, geladeira. Quando chove você tem eu levar uma garrafa de agua e ir de chinelinho e levar o sapato na sacola. A gente vai lá e reclama, já chamamos todo mundo. Não tem rede de esgoto que é o que precisa”.
 
Ana Maria nasceu em uma usina de cana em Santo Antônio do Leverger e cresceu por lá, veio para Cuiabá há 20 anos e desde então mora no Parque Geórgia, lugar onde criou os seis filhos, um deles já falecido. Ela conta que nada mudou em todos esses anos, entra vereador, prefeito, governador e a situação continua a mesma.
 
“E entra presidente de bairro e sai presidente nunca arruma nada. Aqui mesmo tem o que foi nosso vereador, Alan, era pra ajudar nós, que ele elegeu com nós, não foi só com o povo do asfalto. Eu estou esperando por Felipe, pra ele fazer alguma coisa pra gente. Ele faz o projeto “Coletivo Cuiabá”, junta as crianças no sábado. Espero por ele porque antes dele pensar em ser vereador ele já ajudava a gente, então a gente pensa que pode ser que ele faça alguma coisa. Mas o Allan não fez nada”.
 
Amor de vó
 
O aprendizado da vida sempre foi repassado aos filhos, principalmente com relação a formação de família. Ana Maria diz que as conversas sobre relacionamentos e filhos eram constantes, mas isso não impediu a chegada dos netos precocemente. Ela conta que dizia que não iria criar filho de ninguém, mas que foi só olhar pela primeira vez para os netos que sua opinião mudou.

“Meu neto Matheus quando eu choro ele fala sim ‘vó, não chora não, tá com pressão alta? Chora não’ ai ele vai lá na vizinha e fala ‘vai lá, minha vó tá com pressão alta’. A gente briga, discute, mas é neto. Os pais falam que filho criado com vó fica dengoso”.
 
O amor de vó é tão grande que os netos não conseguem ficar longe. São nove morando com ela, atualmente. Segundo Ana Maria, eles gostam de morar com ela e preferem estudar na escola do bairro ao invés de mudar para outra que fique próximo à casa de seus pais.
 
A oportunidade de estudar não lhe foi dada, mas ela bem sabe o valor da educação e por isso incentiva os netos a continuarem na escola. “Hoje em dia o futuro que a gente deve dar pra um neto e um filho é a escola. Antes pai e mãe não tinha esse negocio de estudo, era aprender a trabalhar. Eu falo para os meus filhos e netos, eu não posso deixar uma fazenda, uma coisa boa, mas eu quero deixar o estudo deles. Eu queria uma boa coisa pros meus netos, dar um futuro melhor para meus netos. Eu não quero que eles passem o sofrimento que eu já passei na casa dos outros, limpando o chão, aguentando desaforo”.
 
Me aproximo das netas para conversar sobre o futuro e como andam as coisas na escola. Uma delas é mais receptiva e me conta que está no 9º ano, tem 17 anos, cursa Educação de Jovens e Adultos (EJA) no período da noite, chegou a largar os estudos por um tempo, mas agora os retomou. Ela gostaria de ser arquiteta, mas pensa que por não saber desenhar o sonho seja inalcançável. Ela não conhece a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), na realidade quando escutou a sigla não sabia nem o que significava. Nunca passou perto do campus da instituição em Cuiabá, apesar de morar a apenas 8 Km do local. Sua avó me informa que elas praticamente nunca saem do bairro e raras vezes foram à região central da cidade por falta de dinheiro. 

Outro lado

A reportagem entrou em contato com a assessoria da Secretaria Municipal de Assistência Social e Desenvolvimento Humano sobre ações para famílias em situação de extrema vulnerabilidade, como a dona Ana Maria e de outras tantas no bairro Parque Geórgia e foi informada de que não se registra pedidos de auxílio e também de que a Secretaria não monitora casos de vulnerabilidade social nos bairros de Cuiabá. A assessoria pediu que a reportagem entrasse em contato diretamente com a secretaria adjunta da pasta, Marlene Anchieta Vieira, mas depois de várias tentativas não foi possível o contato por telefone até o fechamento da reportagem.  
 
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