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Sábado, 31 de agosto de 2024

Opinião

A responsabilização das empresas no topo da cadeia produtiva pela prática de violações de direitos humanos em seus elos: a urgente necessidade de avançar

Autor: Carla Reita Faria Leal e Bruna Figueiredo Oliveira Silva

26 Jul 2024 - 08:00

A globalização, fenômeno com vários aspectos, dentre eles o econômico, o político e o social, e que faz com que os países sejam integrados por meio de tecnologias de transporte e comunicação, também disseminou o modelo de produção que se organiza por meio de cadeias produtivas, em que cada um de seus elos fica encarregado de uma parte do processo.

As cadeias produtivas podem se organizar tanto nacionalmente quanto envolver empresas e produtores de vários países, sendo que um dos temas que dominam as discussões no mundo jurídico no momento é a necessidade de se responsabilizar as empresas integrantes dessas organizações quando há violação de direitos humanos, aí incluídos os trabalhistas e ambientais, em seu processo produtivo de produção.

Um dos caminhos considerados mais viáveis atualmente é a imposição da devida diligência obrigatória, em especial àquelas empresas que estão no topo da cadeia, exercendo o chamado “poder relevante”, ou seja, ditando as regras para as demais integrantes do processo produtivo. No caso, a empresa no topo da cadeia, maior ou beneficiária final de todo o encadeamento de atos, tem a obrigação de proteger direitos os humanos em todas as atividades que contribuam para a execução dos seus serviços ou produtos, respondendo pelos danos decorrentes das violações a estes, se eles vierem a ocorrer.

Assim, a responsabilidade de proteção aos direitos humanos não recai apenas sobre o Estado e sobre as empresas diretamente envolvidas nessas violações, mas também sobre os maiores beneficiários de toda a engrenagem do mercado. 

A ferramenta em questão foi inicialmente construída pelos Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos, os quais possuem caráter apenas orientativo. Deste modo,  foi adotado paulatinamente em legislações de diversos países, como a França (2017) e a Alemanha (2021), e até mesmo pelo Parlamento Europeu para toda a Comunidade Europeia, que impõem a devida diligência em direitos humanos, isto é, obrigam as empresas a seguirem práticas empresariais que exerçam o controle e a responsabilidade do respeito aos direitos humanos durante toda a cadeia de sua produção.

No Brasil, a despeito de não termos ainda uma lei nesse sentido, mas apenas um projeto de lei em trâmite tratando de empresas e direitos humanos, vários julgados das cortes trabalhistas já têm reconhecido essa responsabilidade, particularmente quando se trata da industrial têxtil e de sua cadeia produtiva, isso com fundamento em várias teorias, como a da cegueira deliberada, da ajenidade, da subordinação estrutural, dos princípios responsabilização e do poluidor pagador, entre outras.

Entretanto, ainda há muita estrada a ser percorrida. Exemplo disso é o recente julgado da 8ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que negou a responsabilização da Usina Pedra Agroindustrial, de Serrana (SP), pela prática de exploração de trabalho infantil cometida por um de seus fornecedores de cana-de-açúcar.
O processo em questão referia-se a uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho, diante da constatação de que um jovem trabalhava no corte de mudas, plantio e atividades afins para um dos fornecedores da usina, desde que tinha 15 anos, sem assinatura da carteira.

Para fundamentar a rejeição ao recurso do MPT, a Turma concluiu que a relação estabelecida entre a usina e o fornecedor da matéria-prima era proveniente de contrato mercantil. Dada a natureza desse contrato, houve o afastamento da responsabilização da tomadora da matéria-prima com relação ao ilícito, uma vez que o vínculo existente não era capaz de caracterizar a terceirização da mão de obra, tratada pela Súmula 331 do TST.

Mais adiante, ao rebater argumento trazido pelo MPT quanto ao dever de reparação que dispõe o artigo 942 do Código Civil, o relator assinalou que a exploração pelo trabalho infantil foi realizada pela empresa fornecedora de matéria-prima, não sendo provada a participação da usina no processo de produção da cana-de-açúcar, motivo pelo qual ela não poderia ser responsabilizada pelo dano coletivo.

Porém, é preciso considerar que, independentemente da exclusividade, a usina Pedra Agroindustrial dependia essencialmente desta matéria-prima para fazer funcionar a sua cadeia produtiva, ao menos pelo que consta nos autos do processo, estando ela no topo da cadeia, com poderes e deveres com relação ao seu processo de produção. 

Assim, muito embora tenha ficado claro que não se tratava de caso de terceirização, entendemos que há, no ordenamento jurídico brasileiro, fundamentos para a condenação solidária da empresa que se beneficiou, mesmo que indiretamente, da exploração do trabalho infantil, assim como foi feito nos casos que mencionamos da indústria têxtil. 

Por outro lado, fica evidente a necessidade de as empresas, ainda que por ora não compelidas por lei, de adotarem a prática da devida diligência com relação aos elos de sua cadeia produtiva, promovendo e efetivando, internamente e em suas relações comerciais, um real compromisso com os direitos humanos, de modo que práticas condenáveis, como o trabalho infantil e o trabalho escravo contemporâneo, sejam erradicadas de uma vez por todas.

Carla Reita Faria Leal e Bruna Figueiredo Oliveira Silva são integrantes do Grupo de Pesquisa sobre o meio ambiente do trabalho da UFMT, o GPMAT

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