Olhar Direto

Sábado, 20 de abril de 2024

Opinião

Decreto de festim: prejuízos mantidos no decreto de posse de armas de fogo

Analisando o recentíssimo e conturbado decreto que promete "facilitar" a posse de armas de fogo no Brasil, mesmo com uma visão mais otimista sobre o tema, verifica-se que restou mantida a principal questão objeto de críticas não só pelos contrários a posição desarmamentista do Estatuto, mas também pelos amantes da técnica jurídica subordinados ao princípio da legalidade.

Fazendo uma sintética contextualização do tema, imprescindível para melhor compreensão dos equívocos mencionados, impõe verificarmos que, o Estatuto do Desarmamento (Lei n. 10.826/03), desde o seu nascimento, dispusera em seu artigo 4º os requisitos para o exercício do direito à aquisição (posse) de arma de fogo, dentre os quais destaca-se a "declaração de efetiva necessidade", expressada de maneira objetiva no caput do referido artigo, vejamos:

"Art. 4º Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá, além de declarar a efetiva necessidade, atender aos seguintes requisitos:"

Nota-se que da leitura integral do Estatuto, não há mais qualquer outro tipo de menção a esta declaração, de modo que por conclusão lógica do próprio texto em destaque, não resta qualquer dúvida que se trata de ato declaratório personalíssimo e unilateral, a ser executado pelo interessado na aquisição de arma de fogo.

Ocorre que, apesar da obviedade, o texto do decreto que regulamenta o Estatuto, publicado pela Presidência da República em exercício à época (2002-2006), e que vigorava sem alterações relevantes até a edição e publicação do Decreto 9.685/2019, era todo um arcabouço jurídico, por meio de disposições contidas no antigo §1º do artigo 12 do Decreto Regulamentador 5.123/2004 e §1º do artigo 6º da Instrução Normativa nº 023/2005-DG/DPF, de autoria do Diretor Geral do Departamento de Polícia Federal, que acabaram por transformar o requisito de "Declaração de Efetiva Necessidade", em na verdade "Comprovação de Efetiva Necessidade", ou seja, um requisito subjetivo e consequentemente, tornando a concessão do direito à posse de arma de fogo, um ato administrativo discricionário.

Ato continuo, sob a ótica do princípio da legalidade permanece a máxima de que "ubi lex non distinguit nec nos distingueres debemus", ou seja, não cabe ao intérprete, ainda que este seja regulamentador, estabelecer restrições adicionais a aquilo que a lei não fez.

Contudo, apesar de consistir em ilegalidade de simples visualização, esta vigora desde a publicação do Decreto Regulamentar 5.123/2004, jamais sendo corrigida, tanto pelo próprio poder Executivo como também pelo Judiciário, que sempre pareceu não possuir qualquer interesse em julgar as inúmeras ações propostas sob o tema.

Ocorre que, o Presidente sempre foi um crítico desse assunto, inclusive se manifestando publicamente em várias oportunidades sobre a necessidade de extinguir esse critério subjetivo ilegal para a aquisição de uma arma de fogo.

Entretanto, ao que parece a ânsia de solucionar esse problema, buscando "facilitar" a concessão do direito à posse de arma de fogo, tornando-a novamente acessível mediante o preenchimento de requisitos objetivos, somado a falta de conhecimento específico das normas que dispõem sobre o assunto, levaram o Governo a, de maneira confusa, não solucionar o problema de subjetividade, criando apenas uma ferramenta imediata de presunção de cumprimento, e que a longo prazo mostra-se como um requisito até mesmo mais rigoroso que o próprio critério subjetivo criado pelo Decreto Regulamentador 5.123/2004.

Veja-se, o Decreto n. 9.685/2019, alterou o antigo §1º do artigo 12º do Decreto Regulamentador 5.123/2004, que antes dispunha que caberia ao solicitante que buscasse a compra de uma arma de fogo, além de declarar a efetiva necessidade, explicitar os fatos e circunstancias que justificavam o pedido, sendo tais fundamentos examinados pela Polícia Federal, inclusive podendo esta exigir documentação comprobatória, conforme garantia o §1º do artigo 6º da Instrução Normativa nº 023/2005-DG/DPF.

Já com as nova redação trazida pelo Decreto n. 9.685/2019, as informações prestadas na referida declaração passaram a possuir presunção de veracidade dos "fatos e circunstâncias" afirmadas, contudo, além de continuarem sendo examinadas pela Polícia Federal, constam expressamente como motivo para indeferimento de pedido, caso seja "comprovado que o requerente prestou a declaração com afirmações falsas", conforme o novo parágrafo §9º, inciso II, alínea a), do artigo 12 do Decreto 5.123/2004.

Ou seja, houve apenas uma "inversão do ônus", cabendo agora à Policia Federal a comprovação da falsidade das informações.

Na prática, muito embora agora existam as situações em que a efetiva necessidade será presumida, conforme o rol taxativo do artigo 12, §7º do Decreto Regulamentador, restou mantida a ilegalidade trazida na versão primária do Decreto.

No caso ao invés de sanar o problema apenas com a revogação dos dispositivos que obrigavam o requerente a justificar e comprovar a efetiva necessidade, deixando a pura e simples letra da Lei contida no caput do artigo 4º do Estatuto do Desarmamento, que de maneira clara exige apenas a "declaração de efetiva necessidade", o atual Governo mantém as alterações, repita-se ilegais, garantindo novamente que o ato de "Declarar" previsto no Estatuto na verdade é desvirtuado para "Comprovar" pelo Decreto.

Ademais, o direito a posse de uma arma de fogo não deve, nem nunca esteve atrelado à sua real necessidade, mas sim liberdade do cidadão, ficando à exigência de comprovação da necessidade, exclusivamente inerente a obtenção do porte de arma de fogo, mas jamais sendo-lhe exigida como requisito para o puro e simples exercício de direito de propriedade.

Assim, conclui-se que o Governo perdeu uma grande oportunidade de, além de solucionar um problema de forma extremamente simples, apenas revogando os dispositivos ilegais do Decreto, fazendo as alterações pontuais e necessárias sem que se tenha que novamente enfrentar esse tema brevemente, também deixou de cumprir com uma promessa de campanha que visava a extinção do requisito subjetivo para aquisição de uma arma de fogo, gerando não só uma certa insegurança jurídica sobre o tema, como também uma insatisfação nos críticos ao famigerado Estatuto do Desarmamento.

 
Amos B. Zanchet Neto é advogado, associado no escritório Tavares e Morgado Advogados.
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