Olhar Direto

Sexta-feira, 29 de março de 2024

Opinião

Índio bom é Índio na Amazônia!

Segundo as professoras Ruth Amossy e Anne Pierrot, “a visão que nós fazemos de um grupo é o resultado de um contato repetido com representações inteiramente construídas ou bem filtradas pelo discurso dos meios de comunicação. O estereótipo seria principalmente resultado de uma aprendizagem social” (Estereótipos e Clichês, p. 41).

Walter Lippmann (Opinião Pública, 1922) conceitua o estereótipo como sendo a imagem da nossa mente que intermedeia nossa relação com o real, fruto de representações cristalizadas, esquemas culturais preexistentes, através dos quais cada um filtra a realidade ao seu entorno. Já John Harding (Enciclopédia Internacional de Ciências Sociais) diz que o estereótipo é mais simples que complexo, mais errôneo que correto e adquirido mais frequentemente de segunda mão do que por uma experiência própria, além de ser bastante resistente a mudanças. Porém, não é, necessariamente, errôneo e pejorativo. Anna Flora Brunelli, por sua vez, explica que “o caráter negativo dos estereótipos se liga justamente aos processos de generalização do real, que o simplificam, produzindo uma visão esquemática deformada que favorece a emergência de preconceitos”.

Compreendidos esses conceitos, é preciso dizer que o estereótipo do “índio brasileiro” que circula entre nós é uma representação uniforme, simplista, adquirida de segunda mão, generalizante e, no mais das vezes,desvinculada da realidade, sendo, por isso, errônea.

Segundo a Teoria da Justificação do Sistema, da Psicologia Social, “os estereótipos podem servir a funções ideológicas, ‘justificando’ o fato de que alguns grupos explorem outros, fazendo com que a pobreza ou a falta de poder de alguns grupos e o sucesso de outros pareçam legítimos e até mesmo naturais”. E é exatamente isso que ocorre com o estereótipo do “índio brasileiro”, que, desvinculado da realidade e generalizante, funciona como mecanismo de manutenção do status quo e como instrumento justificador da negação dedireitos.

Nesse sentido, é muito comum nos deparamos com estereótipos do “índio brasileiro” como do “índio preguiçoso e improdutivo” e do “índio que vive na mata e protege a natureza”, um negativo e outro positivo.

Quanto ao primeiro estereótipo, perceba-se que ele pode ser facilmente usado como justificador de discursos contra a demarcação de terras indígenas, contra o processo de consulta prévia, livre e informada, ou ainda, mais recentemente, a favor da abertura das terras indígenas para o agronegócio ou para a mineração.

Com efeito, muito embora a Constituição Federal de 1988, assim como as anteriores, assegure aos indígenas o direito originário sobre as terras tradicionalmente ocupadas, ganha força um discurso no sentido de que os indígenas no Brasil já possuem muita terra, que um percentual muito grande do território brasileiro já está na posse dos indígenas, não sendo necessário ampliar esse espaço. “Demarcar mais terras indígenas? Pra quê? Os índios não produzem nada nem com as que eles já tem!”

Não é diferente em relação ao direito de consulta prévia, livre e informada, assegurado na Convenção n. 169 da OIT. A partir da representação do “índio preguiçoso e improdutivo”, as medidas compensatórias definidas em processos de consulta ou em licenciamentos ambientais ganham, perante a sociedade envolvente, essa conotação de extorsão, de aproveitamento indevido, justificando a inobservância de mais esse direito.

Já o estereótipo do “índio que vive na mata e protege a natureza”, que, como dito acima, aparentemente não tem nada de negativo e até possui vinculação com a realidade de alguns povos, mostra-se como forte elemento de justificação de discursos de negação da própria identidade étnica ou da demarcação de terras em áreas mais antropizadas.

De fato, não raras vezes nos deparamos com situações em que ao indígena é negado o reconhecimento de sua identidade étnica porque usa um celular, porque se veste com “roupas de branco”, porque mora na cidade, entre outros aspectos (“olha, índio agora tem até facebook/whatsapp...”; “o palestrante é índio, mas tem doutorado”).

Também o discurso contra a demarcação de terras indígenas encontra “justificativa” no estereótipo do “índio pré-colombiano”, especialmente nas regiões em que os territórios pretendidos encontram-se mais antropizados. Os argumentos de que o “índio mora na mata”, de que “depende da caça e da pesca”, são apresentados como justificativas para se negar demarcações onde as matas são escassas e atividades como caça e pesca inviáveis (“Índio quer terra? Vai pra Amazônia!”).

Por fim, merece um especial destaque, pela sua atualidade, um vídeo que circulou nas redes sociais nas últimas semanas, em que o Presidente da República se encontra com indígenas que lhe apresentam suas demandas ligadas à “liberação” de determinadas atividades econômicas no interior das áreas demarcadas, especialmente agricultura mecanizada e mineração.

Logo no início do vídeo o Ministro da Secretaria de Governo afirma aos indígenas que a intenção do governo é viabilizar o seu acesso a linhas de crédito – “sem intermediários”, como frisou o Presidente – para que se tornem comunidades “realmente produtivas”. Em seguida, o Presidente inicia sua fala dizendo que os indígenas tem terras e “não se justifica ficar em cima da terra [faz um gesto de olhar para cima, como quem não faz nada] e não fazer uso dela, passando necessidade”. Logo depois, afirma que “alguns querem que vocês fiquem dentro da terra indígena como se fossem um animal pre-histórico”. Responsabiliza, então, a esquerda e os Governos de Lula e Dilma por separarem “brancos e índios”, “jogar branco contra índio”, “daí índio invade terra, tem confusão”. E afirma: “vocês tem bastante terra, vamos usar essa terra”. Questiona, então, os indígenas: “vão continuar sendo pobres? Sendo escravizados por ONGs?”

Percebe-se claramente, então, nos poucos trechos destacados do vídeo, a presença dos estereótipos do “índio preguiçoso e improdutivo” e do “índio que vive na mata e protege a natureza”, este último como uma condição imposta aos indígenas por aqueles que se intitulam seus defensores.

Conclui-se, portanto, que o estereótipo do “índio brasileiro”, por ser uma representação cristalizada, simplista, generalizante, via de regra desvinculada da realidade e, muitas vezes, negativa, tem circulado de modo a fazer perpetuar o preconceito existente contra esse grupo, desconhecido da população em geral. Mais do que isso, o acesso da sociedade envolvente apenas ao estereótipo que circula do “índio brasileiro” permite, na linha da Teoria da Justificação do Sistema, que ele seja usado como instrumento perpetuador de uma situação de constante negativa da realização dos seus direitos. Aliás, mais recentemente, o que se tem visto é não só o estereótipo como justificador da manutenção do status quo, mas, também, como justificador de mudanças ainda mais danosas para os povos indígenas.

Já passou da hora de o Estado Brasileiro parar de se preocupar apenas em preparar o índio para o mundo e começar a preparar o mundo para o índio.


Ricardo Pael Ardenghi é Procurador da República, Titular do Ofício de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais Ministério Público Federal em Mato Grosso.
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