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Quarta-feira, 17 de abril de 2024

Opinião

O feminino e os papéis que não escolhemos interpretar

No século XIX Freud indagou: “O que querem as mulheres?”. Após 30 anos estudando e dialogando com o feminino por meio da Psicanálise, não ficou claro qual era a lógica do desejo que conduzia esses seres tão distintos e peculiares, mas diante de tamanha repressão não é por acaso que tais desejos tenham sido carregados por uma aura de mistério.

Posteriormente, Lacan percebeu como a lógica do desejo no feminino é individual em cada sujeito, abundante em camadas, como Babuskas (bonecas russas).

Mas não podemos falar do feminino sem remeter ao contexto sócio histórico, filosófico e cultural (Zeitgeist) que envolve a sociedade através do tempo.

A lógica patriarcal e fálica está presente no mundo ocidental como um ciclo vicioso um sistema hierárquico que busca colocar a mulher como rainha da vivência privada, seja como mãe, cuidadora, objeto de afeto ou proteção, uma imagem que reverbera sempre a favor do masculino. Às mais rebeldes, cabia o papel de bruxa, prostituta, amante ou desejo sexual. Isso faz parte de um dualismo existencial que envolve a simbologia do que é o ser mulher: ora santa, ora puta, ora bruxa, ora deusa.

Ao longo da história, sempre houve um grande problema na imagem da mulher como ser desejante. A esfera criacionista, artística, visionária estava fechada para os homens e cabia a mulher um papel muito importante do mundo privado: o de musa. O papel dela era de inspirar e motivar a força masculina a ser sua melhor versão e, por muitas vezes, a falha do homem era colocada na inaptidão da mulher em realizar isso (tanto como esposa, como mãe).

Na literatura, Flaubert, com um olhar atento ao Zeitgeist da época contou a história de Madame Bovary e fez constatações preciosas sobre a insatisfação de precisar cumprir um papel que a sociedade lhe coloca devido ao gênero.

A personagem Emma Bovary era multidimensional, possuía vários desejos e na impossibilidade de realizá-los sucumbiu aos excessos e a fuga por meio de relações extraconjugais. O pioneiro do realismo romântico mostra as falhas da lógica burguesa, do casamento e dos papéis atribuídos a cada gênero.

Já na literatura não ficcional, uma figura que me fascina é a escritora e (quase) psicanalista Anaïs Nin, que escreveu contos eróticos, romances e diários, relatos de suas experiências amorosas, pensamentos, contradições e a inconstância que perpetuava sua existência, assim como um vazio.

Ela se coloca tanto como ser desejado quanto ser desejante, sendo fragmentada pelo desejo de ser amada, cuidada e acolhida numa sociedade castradora e patriarcal (suas produções literárias se concentram dos anos 20 aos anos 50) e pelo desejo de ser criadora, artista e completa em si.

Hoje em dia, possuímos um acervo de literatura e ciência feita por mulheres e a contraposição entre o “mundo dos homens” (objetividade, política e guerra) e o “mundo das mulheres” (amor, doação, sonho, intimidade) não se mostra estática, mas faz parte de uma noção normativa, cis, que não há a obrigação de pertencer, mas não tira as dores e o desamparo de não caber numa noção normativa da sociedade.

A verdade é que mulheres ainda são vistas como santas ou putas. Bruxas, loucas, histéricas, musas ou chatas.

Historicamente, não se sabiam o que as mulheres queriam pois nem elas sabiam, a posição nunca foi de ser desejante. E como citou Naomi Wolf: “O que uma mulher é ensinada não é a desejar, mas desejar o desejo do outro por ela.”

O Zeitgeist da época nos instiga a uma reformulação dessas noções, o desejo do capitalismo de englobar minorias antes esquecidas como atuantes econômicos nos traz a possibilidade de alterar noções estruturais e isso parte do indivíduo para o coletivo, uma mudança de paradigma na forma de existir no mundo, seja como mulher, como homem, ou não binário.

Todo o acervo histórico, literário, artístico, oriental e ocidental mostram a multiplicidade do ser humano, a possibilidade de sermos muitos, as camadas por trás dos papéis os quais acreditamos pertencer, papéis que aparentemente exercem controle social, mas trazem feridas emocionais que se perpetuam por gerações.

Talvez seja, mais do que nunca, na polarização política em que vivemos, nesse ciclo vicioso de uma Berlin segregada por crenças, a hora de perceber nossos desejos, nossos limites e buscar o debate sem esquecer jamais que os piores males que aconteceram na sociedade foram pautados pela falha em comunicar-se com o outro.

Thais Novis Diniz é estudante de psicologia.
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