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Sexta-feira, 19 de abril de 2024

Opinião

Dostoiévski e o drama humano da existência

Fiódor Mikhailovich Dostoiévski, definitivamente, foi um escritor diferenciado e, podemos dizer, daqueles espíritos únicos que brindam a humanidade com textos magníficos, atemporais e eternos.  À guiza de biografia, Dostoiévski nasceu em Moscou no de 1821, no seio de uma família muito religiosa. Seu avô foi sacerdote e seu pai chegou a cursar um seminário, mas abandonou a vocação eclesiástica para seguir a carreira médica. Assim como seu pai, Dostoiévski sofria de epilepsia. Um episódio importante a ser destacada de sua biografia é a sua prisão no ano de 1848 por pertencer a um movimento de cunha socialista subsersivo. Chegou a ser condenado à morte, porém, no último momento, teve a pena comutada por prisão nos campos da Sibéria, permanecendo dez anos preso, o que lhe causou profunda impressão e que irá refletir-se em suas obras literárias futuras, como, por exemplo, o personagem Raskólnikov de “Crime e Castigo” (1866). Ainda na prisão, se converte ao cristianismo.

As personagens da obra de Dostoiésvski trazem a culpa como elemento estruturante de sua psique, fato este que lhe fornece uma capacidade extraordinária de mergulhar fundo nas questões humanas existenciais universais. Assim, sua “matéria prima” é o homem, o fenômeno humano. Sua obra está recheada com os elementos trágicos da condição humana e seu caminhar inexorável ao encontro do destino. Contudo, o homem dostoiévskiano existe em condição de absoluta liberdade, sendo o artífice de seu destino. Esse elemento é fundamental para entender a complexidade do drama humano em sua obra.

O homem e suas escolhas realizam a história. Trata-se, em consequência, de um ser ambíguo: busca escolhas livres e tais escolhas são fonte de angústia e sofrimento. Há, portanto, um conflito humano decisivo que ocorre no interior de sua alma. Nesse sentido, a personalidade de seus personagens é carregada de alta densidade e complexidade psicológica. Veja-se, por exemplo, o personagem principal de Crime e Castigo, Raskólnikov. Munido de um pretenso sentimento de justiça social, o jovem Raskólnikov decide matar um velha usurária que, em seu processo de racionalização, explorava pessoas humildes e desprotegidas. Durante a execução do crime, acaba por matar também a irmã da velha senhora que chegava no exato momento. A partir de então, o sentimento de culpa passa a corroer sua consciência levando-o a uma necessidade incontrolável de expiar seus pecados, entregando-se à polícia ao final da obra. Assumindo a religião (retorno a um centro metafísico) e cedendo ao amor que nutria pela prostituta Sônia, Raskólnikov obtém sua redenção e expia sua culpa. Aqui podemos observar o movimento de interioridade do personagem dostoiévskiano que experimenta a desordem profunda do ser ao tempo em que o conduz à busca do restabelecimento dessa ordem interna. Ao apostar na razão como norteadora de sua conduta e parâmetro dos seus desejos e paixões, Raskólnikov acreditou superar sua humanidade. A experiência, contudo, o trouxe novamente ao drama de consciência a que todos os mortais estão sujeitos e que é parte inerente do “ser” humano.

A questão da culpa é muito cara no drama dostoiévskiano. Raskólnikov, de tal forma ficou atormentado por ela que jamais utilizou o dinheiro obtido com a morte da usurária, guardando-o sob uma pedra, caracterizando a profundidade e o peso da culpa para a alma humana: como se a realização de uma vontade proibida pela moral impedisse o gozo da sua realização. 

O peso da liberdade para o ser humano é o ponto nevrálgico de sua angústia e sofrimento. Tal como Sartre viria a dizer no Século XX, o homem está condenado a ser livre. Contudo, o homem dostoiévskiano, caso não submeta a liberdade a um centro metafísico, será atirado a um estado de rebeldia, via um percurso tortuoso de exaltação e desespero. No conto “O Grande Inquisidor”, integrante da obra “Irmãos Karamázov”, o personagem Ivan (ateu e liberal) narra a história de Jesus voltando à terra depois de 1500 anos e sendo preso e interrogado pela Santa Inquisição. Esta o acusa de ter proporcionado liberdade aos seres humanos, no entanto, somos incapazes de suportar o fardo dessa responsabilidade. Diz o Grande Inquisidor a Jesus Cristo: “Tinha sede de um amor livre, querias que o homem te seguisse livremente, seduzido por Ti. Em vez de se apoiar na antiga lei rigorosa, o homem deveria, doravante, com o coração livre, escolher o que era o bem e o mal, tendo apenas a Tua imagem para se guiar. Mas não pensaste que ele acabaria repelindo a Tua imagem e a Tua verdade, esmagado por esse fardo terrível que é a liberdade de escolher?”
 
Cristo está a representar a liberdade humana. O Grande Inquisidor, nossa consciência, ciosa dessa responsabilidade no drama da existência. Vê-se, portanto, a busca incessante que Dostoiévski empreende para perscrutar o interior do homem e o significado da vida.  Por que tais temas? É preciso contextualizar a conjuntura política da Rússia de Dostoiévski entre os anos 40 e 70 do Século XIX. Havia uma efervescência revolucionária germinando no czarismo russo. Liberais, socialistas ateus e socialistas cristãos temperados com doses de niilismo postulavam a libertação dos servos e a mudança do regime. A mentalidade revolucionária niilista foi traduzida por Dostoiévski através de seus personagens com o intuito de desnudar as consequências nocivas e destrutivas dessas posturas políticas. Para ele, o afastamento de um centro metafísico constitui a impossibilidade da realização do ser humano em sua plenitude nesta existência. Não há que se almejar qualquer sociedade justa sem Deus. Afastado do absoluto, restaria ao homem apenas a vontade, o desejo, a potência cega e caótica, em um processo de auto-destruição. 
 
É fundamental, para a compreensão do homem em Dostoiévski, fazê-lo sob a ótica de sua profunda fé no cristianismo como o núcleo duro da consciência humana para a realização da vida plena. “(...) se alguém me demonstrasse que Cristo está fora da verdade e se realmente a verdade estivesse fora de Cristo, melhor para mim seria ficar com Cristo que com a verdade”, externou Dostoiévski em uma carta de 20 de fevereiro de 1854, evidenciando a força avassalodora de sua fé e a certeza da impossibilidade de organização das sociedades afastadas da religião.

Assim, os estamentos sociais exteriores não devem ser os alvos de mudanças, mas sim o interior humano. “(...) nenhum povo se organizou até hoje sobre os princípios da ciência e da razão. (...) a razão nunca esteve em condições de definir o bem e o mal ou até de separar o bem do mal ainda que aproximadamente”, afirmou Chátov, personagem de Os Demônios. O exercício da liberdade humana afastada de um centro metafísico nada construiria, tudo destruiria, por definição. A crítica de Dostoiévski ao niilismo, fruto, em verdade, do liberalismo, vai assentar-se nessas premissas.

Acredito que Dostoiévski, através de seus personagens densos e complexos, conseguiu transmitir uma mensagem fundamental acerca do drama humano da existência. A dor, o sofrimento, a angústia, o amor não correspondido, a frustração, os momentos de felicidade, os desejos e todos os sentimentos que emanam da alma humana são partes integrantes do nosso ser. O verdadeiro conhecimento está em aprender a conviver com nossos demônios e anjos. Eles estão dentro de nós e não fora. Como já disse Louis Lavelle em sua obra “A consciência de si”, a verdadeira ambição do conhecimento não pode ser a de “dominar a matéria”, ou seja, o conhecimento não está “à serviço do corpo” (...) “pois todos os homens comtemplam a mesma verdade; todos recebem a mesma luz, que os torna capazes de entrar em comunhão uns com os outros e de criar em si um acordo espiritual do qual o mundo é o instrumento e Deus a testemunha”.

Perceba que Dostoiévski enfrentou dez longos anos de prisão nos campos gelados da Sibéria. Poderia ter se revoltado contra Deus, os homens e a natureza. Contudo, soube, em um momento de cruel condições existenciais, ter uma epifania que o levou em comunhão com um centro metafísico. A partir desse momento, pode-se compreender que a solução do homem para suportar a existência está em seu interior e não fora dele. O exercício da liberdade é inerente à natureza do ser; a culpa e a responsabilidade são efeitos inexoráveis deste atributo. Aplicado à filosofia política temos que sociedades ideais (utópicas) o são pela natureza do ser humano. A supressão da liberdade e a retirada da responsabilidade individual pela existência, comuns ao pensamento revolucionário, na realidade, são contradições por definição. A liberdade humana não pode ser suprimida. Ela existe em potência e está, de forma indelével, fazendo parte da consciência. Nesse sentido, o homem tem o poder de destruir o que existe ad infinitum, restando como imperativo para se evitar o total colapso das estruturas externas a sedimentação da alma humana em um centro metafísico.

Concluindo, podemos acentuar que Dostoiévski foi um “médico” da alma humana. Foi nesta que envidou seus esforços intelectuais, pois acreditava que somente a partir da “cura” da alma doente (leia-se niilista, utilitária, revolucionária etc) seria possível ao homem a organização das estruturas exteriores, jamais pelo caminha inverso. Nesse sentido, Dostoiévski foi profético quanto aos demônios fertilizados no Século XIX e que produziram no Século XX toda a sorte de violência, terrorismo e ideologias insanas e destrutivas. Talvez não haja mais salvação para o ser humano nesta existência, caso o pensamento materialista triunfe.


Julio Cezar Rodrigues é economista e advogado (rodriguesadv193@gmail.com)
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