Olhar Direto

Quinta-feira, 28 de março de 2024

Opinião

A barbárie dos tempos pós-modernos

Nos tempos da informação instantânea pela rede mundial e dos acervos digitais, lembrar a época em que alguém podia ter os jornais impressos entre os dedos das mãos pode soar nostálgico e demasiado retrospectivo. Nos dias que correm, as revistas, jornais e demais veículos periódicos, como os demais objetos escritos, novelas, crônicas, romances, memórias, etc, constituem um valioso patrimônio do passado recente. Qualquer cidadão que assim de disponha, pode consultar tais acervos públicos e se deleitar com a manipulação dos exemplares originais, ou com suas cópias em versões eletrônicas. Por exemplo, vale lembrar que as descrições dos passos e eventos das comemorações do “aniversário dos 250 anos” de Cuiabá, realizadas em 1969, estão disponíveis no periódico “O Estado de Mato Grosso”. A consulta aos jornais embasa a produção de versões sobre o passado a partir da consideração das perspectivas dos nossos ancestrais, sobre os mais diversos temas, que tenham causado polêmicas ou atraído a atenção do publico leitor em décadas passadas.

Do ponto de vista dos acontecimentos e das crônicas de episódios de importância em âmbito nacional, cada região do país tem seu representante favorito, demonstrando os diversos públicos e os perfis individuais de cada leitor. Tal comportamento também pôde ser acompanhado em alguns grupos de migrantes que chegaram a Cuiabá na década de 1980, pois havia uma rivalidade amigável entre os diversos contingentes que adotaram a cidade, que também se expressava nos impressos de suas respectivas preferências: “O Estado de São Paulo” e a “Folha de São Paulo” para os oriundos de tal unidade da federação, que se contrapunham aos cariocas, cujas preferências se dividiam entre “O Jornal do Brasil” e  “O Globo”, mas se você fosse adquirir um “O Correio Brasiliense”, todos saberiam que se tratava de um alto funcionário público ou alguém de sua família.

Esses periódicos chegavam a Cuiabá por via aérea, eram muito disputados entre seus leitores assíduos nas bancas do aeroporto e da Praça Alencastro, as mais visitadas na época. Aos domingos se repetia a romaria e o caminho inverso, do centro para as residências. A leitura do exemplar de domingo era um ritual, que durava horas a fio, acrescido das revistas de circulação nacional, que chegavam a partir de sexta-feira a noite.

As escolas incentivavam seus alunos a acompanharem seus pais, quando fosse o caso, bem como aqueles que fossem fazer exame vestibular, ou algum concurso público, reforçando as virtudes da leitura. Uma das vantagens dos funcionários públicos era contar com os jornais locais que circulavam nas repartições, e também pelos bancos, hospitais, além de salas de espera de médicos ou dentistas, barbearias, farmácias, lojas, espaços que eram abastecidos com este signo de distinção social, pateando que a modernidade da circulação da palavra escrita era um valor a ser preservado, e que alçava os leitores à camada de cidadãos ilustrados. A desinformação e a alienação social eram vistas, portanto, como sinais de atraso e comprovantes de ignorância que podia ser superada…

A liberdade de expressão tinha na imprensa escrita um espaço muito significativo, que abarcava aqueles que visavam participar das manifestações políticas, sociais e culturais da cidade que habitavam, ao que se acrescia análoga atitude face as questões nacionais. Portanto, se hoje temos a possibilidade de consultar os periódicos impressos e seus respectivos textos em telas de cristal líquido dos celulares, tablets, notebooks, kindles e smart tvs, seria de se supor, se o argumento do avanço tecnológico fosse integralmente verídico, que os cidadãos fossem mais bem informados do que antes. Também seria plausível supor que o acesso a múltiplas formas de desfrutar da circulação de bens culturais redundasse em uma coletividade mais integrada, respeitosa e comprometida com o respeito as opiniões alheias e a tolerância diante da diversidade de gostos e atitudes.

Infelizmente, o argumento de que a elevação do padrão cultural de uma cidade também implica no apreço a convivência civilizada e ao respeito democrático das divergências se esvaziou. O acesso a bens culturais e artísticos mais elaborados, a disponibilidade de espaços públicos para expressão dos interesses setoriais e debate dos pontos de vista de corporações, como percebemos na denominada polarização política que caracteriza nossos tempos, não redundou num avanço civilizatório.

Mesmo quando autoridades encasteladas em Brasília se disponham ao vexame de protagonizar boicotes repercutidos em redes sociais, incitando seus correligionários a abrir mão de opiniões autônomas, não vou acompanhá-los; ainda considero a Folha de São Paulo, o Estadão, o Globo, dentre outros, mais confiáveis do que as mensagens de autoridades inspiradas na lei do 38... Mesmo quando expressar a mais bárbara intolerância cultural, como a da campanha evangelizadora de ocultistas e astrólogos que inspiram a entourage de Brasília, continuarei a defender o direito de livre opinião e de autônoma manifestação. Mesmo quando se valoriza a sanha de funcionários públicos ativistas, que acreditam em fazer justiça por meios transversos, desde que atinja os alegados inimigos da pátria, nessa paisagem de terra arrasada pela guerra cultural, a tolerância deve ser valorizada. Mesmo quando a barbárie bate falsa continência diariamente, seguirei sendo leitor assíduo da Folha de São Paulo, de O Globo, do Estadão, do Jornal do Comércio, e dos bravos periódicos locais.

Será triste nosso futuro, quando permitimos que a barbárie se manifeste sem peias e diante de tal absurdo, fiquemos inertes e indiferentes.
 


Carlos Américo Bertolini é Bacharel em Ciências Econômicas (IFCH/UNICAMP/1980); Mestre em Educação (IE/UFMT/2000); Doutor em História (IGHD/UFMT/2016); funcionário público federal, lotado na UFMT (08/1982); e-mail:<cabertolini@gmail.com>.
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