Olhar Direto

Sábado, 20 de abril de 2024

Opinião

O pão e o comunista


Há vários anos atrás, quando eu começava a carreira de jornalista, trabalhei numa pequena emissora de TV a Cabo, em São José do Rio Preto, interior de São Paulo. Foram tempos difíceis, mal tinha dinheiro para comer.

Lembro que, naquele período, recebia uma um "salário" de R$ 200. Era o que eu tinha para passar o mês, embora a mensalidade da faculdade fosse três vezes esse valor. Era um dinheiro que pagava o quarto onde dormia (em condições indescritíveis) e algumas esfirras do Habibs, que comia a noite por 28 centavos a unidade. Com o tempo, consegui um "cargo melhor" e outros trabalhos. Mas, até isso acontecer a fome me assombrava.

Na pequena emissora de TV, ligada a uma Fundação de Pesquisa (sinceramente não entendida muito bem aquilo ali) havia um diretor que chamávamos carinhosamente de Professor Eduardo. O velho comunista adorava as histórias sobre revoluções, os ideais marxistas e outras teorias que meu pragmatismo jornalístico insistia em ignorar. Entretanto, uma coisa era impossível me passar despercebido: o pão que ele trazia toda tarde.

Assim como alguns colegas da emissora (éramos cinco ou seis jovens com pouco dinheiro), todos os dias eu visitava a cozinha e tirava pedaços do pão do Professor Eduardo. Era pão com torresmo, pão caseiro, às vezes com ingredientes que a fome nem deixava a gente perceber direito. Entretanto, produtos de qualidade, fazendo a cozinha virar um oásis naquele prédio pequeno e sem estrutura. Ocorre que, por diversas vezes, ouvíamos a reclamação em tom paternal: "vocês acabaram com meu pão! Deixem ao menos um pedaço pra mim".

O Professor Eduardo era um cara memorável, agia com temperança diante das dificuldades e deixava a gente ousar, aprender a fazer televisão ao vivo, no ar. Confiança que beirava a irresponsabilidade. Afinal, éramos jovens com pouco juízo e muitas ideias. Aprendi muito naquele lugar.

Fiquei quase um ano ali, depois tive a oportunidade de partir, conhecer outras empresas, cidades e estados. Mas, um dia, antes de ir embora eu perguntei a ele se não ligava de a gente, todo dia, comer o pão que ele trazia. Confessei em tom agradecido que muitas vezes era minha única refeição durante o dia. O velho comunista me olhou nos olhos, sorriu e falou com simplicidade: "eu sei, é por isso que eu trago o pão. Pra vocês. Mas, não conta para os outros". Há algum tempo soube que o Professor havia falecido. Fiquei triste, depois lembrei de algumas histórias que me fez sorrir.

Refleti sobre eu nunca ter gostado das ideias de Marx. Menos ainda dos ideais dos seguidores dele, os marxistas. Eu confesso que não acredito que o ser humano, de modo geral, seja capaz de dividir tudo o que tem com os outros. O mundo atual não funcionaria assim, principalmente quando a pessoa é obrigada a fazer isso.

Algo me ocorre hoje: sem a visão míope dos extremismos seria possível enxergar a beleza do agir sincero em busca do bem, do bom e do belo, independentemente da ideologia política? Isso ajudaria a desbastar a pedra bruta do nosso ser? Visitando minhas lembranças posso afirmar que aquele homem, que jurava ser ateu, tinha um comportamento mais cristão do que muita gente. O agir falava por ele.

Hoje, se realmente queremos um mundo melhor, se estamos empenhados em promover o Progresso da Humanidade, devemos agir com as ferramentas que temos, com o que possuímos de melhor. Seja conservador ou liberal, capitalista ou comunista, mas seja do bem.




André Luiz Barriento é jornalista, mestre em Comunicação e Mediações Culturais pela UFMT e assessor de comunicação.  
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