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Quinta-feira, 28 de março de 2024

Opinião

A pandemia de gripe Espanhola em Mato Grosso 1918

Era dia 08 de abril de 1919, aniversário de 200 anos de Cuiabá, Dom Aquino Corrêa, 35 anos, governador do Estado de Mato Grosso desfilava garboso no seu imponente Fiat Landaulet Bordeaux pelas estreitas ruas da capital, buzinando e acenando para a população sentado no banco traseiro. O carro oficial do governo, recém adquirido, foi um dos primeiros veículos automotores de Cuiabá.

Essa cena pitoresca representa muito bem a atitude do governador diante da pandemia de Influenza ocorrida no ano anterior.

Esses festejos de ostentação era a grande aposta política do seu governo, no melhor estilo pannis et circense dos romanos. As comemorações eram uma estratégia para aliviar o clima fúnebre depois das consequências cruéis da pandemia de Influenza ocorridas no ano anterior; Tentar distensionar as lutas separatistas no sul de Mato Grosso celebrando a união e também para “imortalizar” sua imagem nas memórias políticas. Como de fato aconteceu, logo após sua morte Aquino virou nome de cidade, fotografias, pinturas em quadros, bustos em praças, nome de ruas, escolas, além de ter deixado 12 obras literárias autorais que lhe rendeu o título de “Flor do Lácio Cuiabano”.

Nenhum outro governador da História de Mato Grosso investiu tanto no culto à personalidade, a autopromoção pessoal e a construção de uma identidade regional mato-grossense do que Dom Aquino Corrêa.

Contudo, poucos sabem que foi no tempo de seu governo que ocorreu a segunda maior calamidade de saúde pública da história do Estado depois da varíola: a gripe espanhola Influenza.

A pandemia chegou em Mato Grosso no mês de setembro de 1918 através dos passageiros dos barcos á vapor que navegavam na bacia platina. Essas embarcações chamadas de paquetes funcionaram entre os anos de 1856 a 1950, faziam o roteiro Cuiabá-Cáceres-Corumbá-Montevidéu-Rio de Janeiro (ida e volta) e duravam em média 30 dias.

Depois das notícias da chegada de pandemia de Influenza no Rio de Janeiro em agosto de 1918, o governo de Mato Grosso passou a fiscalizar a chegada das embarcações no Porto do Rio Cuiabá. O próprio Inspetor Chefe Sanitário Geral Dr. Caio Corrêa se incumbia da vistoria das embarcações: as condições de higiene e sanitárias internas e a aplicação de um questionário aos passageiros e tripulação. As autoridades sanitárias resolveram também criar as pressas um posto de quarentena próximo a Corumbá na chamada Serra do Amolar, margens do rio Paraguai com um efetivo de um médico responsável e 12 militares para inspecionar as embarcações.

Caso encontrasse vestígios de contaminação nas vistorias, seja na Serra do Amolar ou em Cuiabá, todos entravam numa quarentena obrigatória. Nos casos de Cuiabá os doentes mais abastados eram tratados pelos médicos em casa, mas se fossem pobres, eram internados na Santa Casa de Misericórdia ou eram enviados para o lazareto Hospital São João dos Lázaros, espaço público especializado em doentes de hanseníase e alienados.

Para tentar acalmar os ânimos e pavor da população que já andava amedrontada desde a epidemia de Varíola de 1867, o arcebispo metropolitano Dom Carlos D´Amour conclamou os fiéis através do jornal A Cruz no dia 03/11/1918 para realizarem preces públicas contra a influenza: “filhos diletíssimos, é nosso dever lembra-vos também que são os pecados e as injustiças dos homens que provocam esses flagelos, somente permitido por Deus nosso Senhor para tocar e converter os corações”.

Sob o comando do inspetor, as cidades de Cuiabá e Várzea Grande foram subdividias em 6 regiões com a missão de vistoriar todas as casas. Na região do centro- R. Barão de Melgaço, descendo a Av. Ponce de Arruda até a R. Travessa da Piedade (Cemitério) e a margem direita do Córrego da Prainha: Dr. Estevão Alves Correa; Da R. Barão de Melgaço até a Generoso Ponce acima, Rua da Boa Morte até Av. Lavapés: Dr. Floriano Lemos; Da avenida Generoso Ponce até o Largo do Arsenal desde a margem direita da Prainha até a Caixa D´Água: Dr. Caio Corrêa ; Do Bairro do 2 Distrito desde o Largo do Arsenal até o porto e rio Cuiabá- Dr. Epaminondas; Dos bairros Areão, Baú, Mundéu margem esquerda da Prainha, incluindo Barcelos: Dr. Juvenal dos Santos e do outro lado do rio em Várzea Grande: Dr. Ciríaco Pompeu Paes de Campos.

A primeira vista, parece eficiente o plano de cobertura e atendimento médico, mas é preciso considerar que nessa época apenas as classes mais abastadas tinham acesso a saúde e os demais infectados tinham apenas a Santa Casa de Misericórdia como último socorro.

Esse equipamento público Santa Casa colapsou rapidamente pois possuía apenas 100 leitos hospitalares pra dar conta da cobertura de mais de 200 mil pessoas em todo o Estado. Pra se ter uma dimensão do problema de saúde, somente Cuiabá , Várzea Grande, Rosario D’Oeste e N. Sra. do Livramento registraram 8 mil casos da influenza

Nessa época os médicos indicavam medicamentos alopáticos misturados com homeopáticos, como o uso da quina, que já era pesquisada pelo padre José Manoel de Siqueira na região desde 1800.

Quanto a população desassistida de cuidados médicos dizia antigo ditado “remedeia com que tem”, ou seja, com as práticas curativas populares: rezas brabas, benzeções, chás de quina, hortelã, carqueja, alfavaca, gengibre, cebola; cachaça com alho, mel e limão se tornaram meios preventivos e curativos. Também se usava a purificação dos ambientes para afastar os miasmas com queima de alho, enxofre ou incenso de alcatrão e alfazema.

Diante da pandemia a igreja católica de Cuiabá organizou três postos de socorros e caridade para distribuição de medicamentos e gêneros alimentícios as centenas de flagelados: o primeiro posto, foi instalado na residência do governador (na rua 13 de Junho), sob a direção do padre Manoel Gomes de Oliveira; O segundo, no Seminário Arquiepiscopal (Morro do Seminário) e o terceiro e último no Liceu Salesiano (atual Escola São Gonçalo), ambos comandados pelo Arcebispo D. Carlos D´Amour.

Segundo, o relatório do governo de Dom Aquino foram contaminados pela influenza dos meses de outubro de 1918 a janeiro de 1919, 27.061 pessoas em todo Mato Grosso. A doença alcançou 19 dos 21 municípios existentes, tendo havido 676 óbitos no Estado. É possível que esses números oficiais tenham sido bem maiores que o relatado no documento.

Pelo dito relatório, Cuiabá, Coxim, Campo Grande, Rosário D´Oeste, N. Sra. do Livramento, Poconé e Cáceres foram as cidades com os maiores índices de casos de contaminação. Na capital, apesar das 3000 infectadas, faleceram apenas 29 pessoas. Corumbá foi a cidade onde ocorreu o maior número de óbitos, chegando a 160 vítimas em 3 meses.

Se na capital a estrutura de saúde era precária, imagina então a situação de calamidade do interior, em especial no sul de Mato Grosso. Os estragos da influenza nessa região causou a aceleração dos movimentos de divisão do Estado.

Por mais que as festas de 200 anos foram nababescas em 1919 com a criação do Instituto Histórico de Mato Grosso, Academia Mato-grossense de Letras, do Hino e do Brasão de Mato Grosso, a aprovação política do governo de Dom Aquino depois da gripe Influenza foi das piores possíveis.

Para as comemorações o governo gastou 534.865$ mil contos e oitocentos e sessenta e cinco mil réis e apenas 116.908 $ 728 mil contos e setecentos e vinte oito mil réis no combate à pandemia.

Acusado como o grande culpado pelos flagelos da doença sobretudo sobre os mais pobres, Dom Aquino terminou seu governo em 1922 de forma dramática, sem conseguir lançar candidato a sua sucessão.

No último dia como governador teve que sair às pressas pelos fundos do Palácio Alencastro debaixo de gritos e vaias da população que o acusaram inclusive de corrupção. Nesse caso, o vírus da influência da opinião pública foi tão letal para a vida política do governador quanto o da pandemia.

Voltamos a enfrentar a pandemia da gripe com nome de COVID 19 cem anos depois e percebemos muitas diferenças e semelhanças entre os dois momentos históricos de Mato Grosso e do Brasil. Faça suas comparações.

As consequências nefastas de uma sociedade que segue em direção ao futuro desconhecendo seu passado é a sina de ter que revive-los de maneira trágica, sem aprender com as lições deixadas, erros e acertos. Essa certamente são as lições deixadas pela epidemia de Varíola de 1867 e de Influenza de 1918.

Para esse texto tive que fazer pesquisa em fontes primárias jornais e documentos de época pois curiosamente não encontrei nenhuma referência bibliográfica sobre esse período e sugiro aos interessados no tema conhecer o acervo sobre Dom Aquino no Museu de Arte Sacra de Mato Grosso e na Casa Dom Aquino, dois importantes espaços públicos de memória.



Suelme Fernandes é analista político e Mestre em História pela UFMT. Siga nas redes sociais @suelmefernandes.
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