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Quinta-feira, 28 de março de 2024

Opinião

Abuso infantil não é brincadeira

Autor: Franklin Epiphanio Gomes de Almeida

27 Mai 2020 - 08:00

Poucos sabem, mas o mês de maio é dedicado no Brasil ao combate ao abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Não tão famoso quanto o setembro amarelo, outubro rosa, ou novembro azul - o que é sintomático da invisibilidade da questão - o maio laranja visa evidenciar problemas que são muito relevantes e reais para milhões de crianças e adolescentes em nosso país.

Em 2018, mais de 35.000 crianças e adolescentes de até 13 anos de idade foram vítimas de violência sexual no Brasil[1], ou seja, pelo menos 04 meninos ou meninas com menos de 13 anos foram abusados a cada hora. Dados do Governo Federal[2] para o mesmo ano indicam que o Disque 100 (Disque Direitos Humanos) recebeu 76.216 denúncias envolvendo crianças e adolescentes, sendo 17.093 dos registros referentes a violência sexual, com a predominância de vítimas do sexo feminino em mais de 75% dos casos. Mais de 50% das denúncias, tinham como vítimas crianças entre 1 e 5 anos de idade.

Quanto à exploração sexual, certamente a pior forma de trabalho infanto-juvenil, o Instituto Liberta estima[3] que cerca de 500 mil meninas e meninos são explorados sexualmente no país, a maioria deles com idade entre 7 e 14 anos. Tal estimativa, coloca o Brasil no topo do ranking mundial de exploração sexual de crianças e adolescentes, atrás apenas da Tailândia. Em várias cidades brasileiras, crianças nas ruas à disposição de abusadores e exploradores já parece fazer parte da paisagem urbana.

Verifica-se, no entanto, que, apesar de estarrecedores, tais dados certamente estão muito distantes de refletir a realidade. O Boletim Epidemiológico 27 do Ministério da Saúde[4] indica que entre 2011 e 2017, o Brasil registrou um aumento de 83% nas notificações de violências sexuais contra crianças e adolescentes. Todavia, crimes de violência sexual costumam ser extremamente subnotificados.

De acordo com a Childhod Brasil[5], aproximadamente 90% dos casos de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes não são notificados às autoridades. Há ainda falta de padronização dos dados coletados e de integração dos órgãos responsáveis pela prevenção e combate a estes crimes, o que dificulta a compreensão de sua real dimensão.

De forma ainda mais dolorosa, em muitos casos o ambiente familiar não é o mais seguro para as vítimas de abuso sexual, em especial para as crianças. Aproximadamente 70% dos casos de violência sexual[4] contra elas ocorreram no âmbito familiar, sendo os agressores pessoas do convívio das vítimas e com relação de proximidade e confiança. Pais, padrastos, mães, tios e avós representam a maior parte dos envolvidos nas ocorrências. Em 81,6% dos casos[4], o abusador era do sexo masculino. Além disso, grande parte dos abusos domésticos tem caráter de repetição.

Como se não bastasse, o isolamento social ocasionado pela pandemia da COVID-19 torna as crianças e adolescentes ainda mais vulneráveis à violência sexual. À medida que a doença avança, casos de abusos e violência doméstica tendem a se intensificar devido à onipresença do abusador. Todavia, contraditoriamente, pode ser que o registro dessas ocorrências diminua. Por não estarem frequentando a escola, consultórios médicos, espaços públicos, e por conta do reduzido contato social para além do convívio do núcleo familiar, a constatação da violência por terceiros fica ainda mais difícil, o que coloca as crianças em maior risco.

A violência sexual sofrida por crianças e adolescentes configura grave problema de saúde pública e violação dos direitos humanos, gerando sérias consequências nos âmbitos individual e social, e trágicas consequências psicológicas e físicas que engendram inúmeros traumas. Estudos mostram[6] que o abuso sexual infanto-juvenil é um fator de risco significativo para psicopatologias.

Uma revisão de diversas pesquisas[7] sobre os efeitos do abuso sexual infantil indicou como efeitos iniciais dessa violência medo, ansiedade, introspecção, depressão, raiva, hostilidade, agressão e comportamento sexual inapropriado à idade. No longo prazo são relatados problemas como depressão e comportamento autodestrutivo, abuso de substâncias psicoativas, ansiedade, sentimento de isolamento, estigma, baixa autoestima, dificuldade em confiar nos outros e tendência à vitimização repetida. E os tipos de abuso mais prejudiciais são as experiências envolvendo figuras paternas, contato genital e uso de violência física.

A prevenção a tais práticas criminosas passa pela centralização, padronização e melhor tratamento dos dados, bem como a realização de pesquisas de vitimização a fim de se conhecer a real dimensão do problema. Passa também pela integração dos órgãos responsáveis pela prevenção, o fortalecimento dos órgão de inteligência a fim de identificarem as redes de exploração, a formulação de políticas públicas baseadas em evidências e a discussão do assunto com crianças e adolescentes de maneira responsável e com linguagem própria à faixa etária, alertando-as para a existência do problema, para a importância da autoproteção e sobre como devem agir caso se sintam violadas.

Além disso, todos devemos estar atentos e utilizar os canais disponíveis (Disque 100, Conselho Tutelar, Polícias, etc.) para denunciar casos suspeitos. Crianças e adolescentes vítimas de violência sexual costumam demonstrar sinais denotando que algo grave ocorreu[5], tais como: mudanças bruscas de comportamento, mudanças súbitas de humor, insegurança, isolamento, depressão, comportamentos sexuais inadequados para a idade, lesões sem motivo claros, doenças sexualmente transmissíveis, evasão escolar, queda no rendimento escolar, entre outros. Ao perceber esses sinais, os responsáveis pela criança devem agir com afeto e nunca de maneira punitiva, buscando entender o que está acontecendo.

Especialmente para os casos de abuso sexual, o diálogo dentro de casa ajuda as crianças a falarem sobre o problema e a identificarem a violência. Crianças e adolescentes que conversam abertamente com os pais, educadores, ou responsáveis têm maior proteção contra eventos violentos. Estudos mostram[6] que os esforços de prevenção que se concentraram na educação infantil para aumentar a conscientização e na visita domiciliar para diminuir os fatores de risco são promissores, e que a terapia cognitivo-comportamental é efetiva no tratamento de alguns sintomas.

Leclerc, Wortley e Smallbone (2011)[8] descrevem e examinam o modus-operandi de abusadores sexuais de crianças e mapeiam as medidas de prevenção situacional que podem ser adotadas como forma de evitar que tais crimes aconteçam. Segundo eles, primeiramente o abusador desenvolve um relacionamento com a criança e, em seguida, passa a nutrir essa relação dando amor, atenção, privilégios e presentes. Em continuidade, seleciona um local seguro para a prática do abuso e cria circunstâncias para estar a sós com a vítima. Posteriormente dessensibiliza a criança para o contato sexual e a coage, mesmo que sutilmente, a desempenhar atos libidinosos. Finalmente usa chantagem emocional para evitar que a criança o denuncie.

Como medidas de prevenção, Leclerc, Wortley e Smallbone (2011)[8] dizem que é importante incentivar sessões de treinamento para pais e filhos sobre o modus operandi e o contexto do abuso, evitar deixar a criança sem a supervisão de alguém de confiança, aumentar a vigilância onde as crianças se reúnem, evitar delegar atividades íntimas como banho a outras pessoas, prestar atenção em pessoas recém-chegadas ao ambiente familiar, como novos companheiros da mãe ou pai e parentes que se instalem na casa, monitorar recebimento de presentes, ensinar a criança a distinguir contatos físicos adequados e inadequados, manter abertos canais de diálogos dentro de casa, entre outros.

É importante que os profissionais que venham a lidar com estas situações[9], sejam acolhedores e respeitosos, com conhecimentos, habilidades e atitudes culturais que possam ajudar as vítimas de maneira adequada, e treinados para reconhecer e responder ao sofrimento das crianças que encontram.

Um ponto essencial a ser levado em consideração é a escuta especializada, que é “o procedimento realizado pelos órgãos da rede de proteção nos campos da educação, da saúde, da assistência social, da segurança pública e dos direitos humanos, com o objetivo de assegurar o acompanhamento da vítima ou da testemunha de violência, para a superação das consequências da violação sofrida, limitado ao estritamente necessário para o cumprimento da finalidade de proteção social e de provimento de cuidados”, nos termos do artigo 19 do Decreto 9.603 de 10 de dezembro de 2018[10]. É importante também evitar que a criança precise recontar os fatos várias vezes.

É dever de todos nós enquanto cidadãos lutar para que a Convenção sobre os Direitos das Crianças - instrumento de direitos humanos mais aceito na história universal, tendo sido ratificado por 196 países -, bem como o Estatuto da Criança e do Adolescente não sejam apenas palavras eloquentes apropriadas por discursos políticos vazios e oportunistas, mas que resultem em políticas públicas que efetivamente promovam a proteção à infância e adolescência.




Franklin Epiphanio Gomes de Almeida é Tenente Coronel da PMMT, Coordenador Estadual da Rede Cidadã e mestre em Policing pela University College London.

Referências




[1] Fórum Brasileiro de Segurança Pública. (2019). Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/10/Anuario-2019-FINAL_21.10.19.pdf. Acesso em 19 de maio de 2020.

[2] Brasil. (2019). Crianças e adolescentes: balanço do Disque 100 aponta mais de 76 mil vítimas. Disponível em https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2019/junho/criancas-e-adolescentes-balanco-do-disque-100-aponta-mais-de-76-mil-vitimas. Acesso em 19 de maio de 2020.

[3] Instituto Liberta. (2019). Você sabia que exploração sexual é considerada uma das piores formas de trabalho infantil? Disponível em https://liberta.org.br/voce-sabia-que-exploracao-sexual-e-considerada-uma-das-piores-formas-de-trabalho-infantil/. Acesso em 19 de maio de 2020.

[4] Brasil. (2018). Boletim epidemiológico 27. Análise epidemiológica da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, 2011 a 2017. Disponível em http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2018/junho/25/2018-024.pdf. Acesso em 19 de maio de 2020.

[5] Childhood Brasil. (2019). A violência sexual infantil no Brasil. Entenda o cenário da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil e saiba como preveni-la. Disponível em https://www.childhood.org.br/a-violencia-sexual-infantil-no-brasil. Acesso em 19 de maio de 2020.

[6] Putnam, F. W. (2003). Ten-year research update review: child sexual abuse. Journal of the American Academy of Child & Adolescent Psychiatry

Volume 42, Issue 3, March 2003, Pages 269-278. Disponível em https://doi.org/10.1097/00004583-200303000-00006. Acesso em 19 de maio de 2020.

[7] Browne, A.; Finkelhor, D. (1986). Impact of child sexual abuse: a review of the research. Psychological Bulletin, 99(1), 66–77. Disponível em https://doi.org/10.1037/0033-2909.99.1.66. Acesso em 19 de maio de 2020.

[8] Leclerc, B.; Wortley, R.; Smallbone, S. (2011). Getting into the script of adult child sex offenders and mapping out situational prevention measures. Journal of Research in Crime and Delinquency, 48(2), 209–237. Disponível em https://doi.org/10.1177/0022427810391540. Acesso em 19 de maio de 2020.

[9] Berkman, M.; Esserman, D. (2004). Police in the lives of young children exposed to domestic violence. Disponível em https://clas.uiowa.edu/socialwork/sites/clas.uiowa.edu.socialwork/files/paper_4.pdf. Acesso em 19 de maio de 2020.

[10] Brasil. (2018). Decreto 9.603 de 10 de dezembro de 2018. Regulamenta a Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Decreto/D9603.htm. Acesso em 19 de maio de 2020.








 
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