Fernando Faria
Advogado
Imagine um julgamento onde a principal prova contra o acusado é contestada por falhas em sua preservação (lacre rompido de um smartphone apreendido ou deslacre sem explicação ou justificativa técnica). Agora pense nas consequências quando essa prova, utilizada para incriminá-lo, é considerada inválida, justamente pela ilicitude acima narrada. Esse cenário, infelizmente, reflete um problema central no sistema de justiça criminal: a cadeia de custódia.
A cadeia de custódia consiste no conjunto de procedimentos destinados a preservar a integridade e a autenticidade de uma prova coletada em uma investigação criminal, desde o momento de sua obtenção até sua utilização em juízo. Esses procedimentos asseguram que as evidências apresentadas sejam confiáveis, livres de contaminação ou manipulações, contribuindo para a fidedignidade do processo judicial.
Quando a integridade de uma prova é violada, o que está em jogo não é apenas o caso em questão, mas a credibilidade de todo o sistema de justiça. Não se trata de apenas um procedimento técnico ou burocrático; é o fio que separa a justiça da arbitrariedade. Sua função é garantir que os elementos coletados sejam preservados em sua autenticidade e integridade, assegurando um julgamento justo.
Cada etapa do manuseio de um vestígio ou evidência apreendida – incluindo coleta, transporte, armazenamento, análise e apresentação em juízo – deve ser meticulosamente documentada.
No Brasil, em respeito ao art. 5º, LIV, da Constituição da República, que preconiza que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos, editou-se a Lei Federal 13.964/2019, que introduziu dispositivos específicos no Código de Processo Penal, detalhando as etapas necessárias para a preservação adequada da cadeia de custódia.
De acordo com o art. 158-A e seguintes do Código de Processo Penal, as etapas da cadeia de custódia começam com a identificação do vestígio, seguida pelo isolamento e preservação do local, coleta, acondicionamento em recipientes lacrados e seguros, transporte com registros detalhados, recebimento formal pelo responsável e descarte ou devolução conforme determinação judicial.
No entanto, a realidade das instituições responsáveis pela investigação ainda contrasta com o rigor exigido por essas normas. Delegacias e instituições periciais frequentemente operam com recursos escassos, comprometendo a aplicação efetiva da cadeia de custódia, colocando em risco a credibilidade do sistema de justiça.
A desmaterialização das provas, um marco da era digital, amplia significativamente os desafios enfrentados no processo penal.
Diferentemente das evidências físicas, que possuem um caráter tangível, as provas digitais – como e-mails, mensagens de texto, registros de redes sociais e arquivos eletrônicos em geral – apresentam volatilidade inerente que as torna altamente suscetíveis à manipulação e à perda de rastreabilidade.
Ferramentas como criptografia, hashing e blockchain asseguram a segurança, autenticidade e rastreabilidade das provas digitais, garantindo que permaneçam inalteradas durante todo o processo investigativo
A criptografia assegura que apenas partes autorizadas possam acessar as informações, protegendo-as contra acessos não autorizados ou alterações indevidas.
O hashing permite verificar se a prova foi alterada em qualquer momento do processo, garantindo a sua integridade ao criar uma espécie de “impressão digital” única para cada arquivo.
O blockchain, por sua vez, oferece um registro descentralizado e imutável que assegura a rastreabilidade completa das provas, sendo especialmente útil em contextos digitais e criminais.
Nos Estados Unidos, essas tecnologias são amplamente aplicadas, sob o rigor das Federal Rules of Evidence (Regras Federais sobre Provas). Órgãos como o FBI garantem a preservação integral das provas, empregando sistemas integrados de rastreamento e autenticação.
Essas ferramentas asseguram que as provas digitais sejam preservadas com máxima segurança e rastreabilidade, mas sua aplicação no Brasil enfrenta desafios significativos. A falta de recursos tecnológicos em delegacias, a ausência de integração entre órgãos policiais e periciais, e a carência de capacitação técnica comprometem a eficácia da cadeia de custódia em investigações criminais.
No entanto, falhas na cadeia de custódia não apenas prejudicam o(a) investigado(a), mas geram desconfiança generalizada na sociedade sobre a capacidade do sistema de garantir justiça. A observação rigorosa da cadeia de custódia reflete o respeito às garantias constitucionais e ao devido processo legal, protegendo tanto os direitos de todos, inclusive os da sociedade.
Verificada a quebra da cadeia de custódia, por qualquer motivo – seja por lacres irregulares, deslacres sem justificativa ou explicação técnica, ou manipulação indevida de smartphones antes da perícia oficial –, a única opção admissível é a exclusão imediata de todos os elementos e provas ilegais dos autos, incluídas as decorrentes. Respeitadas estarão a Constituição da República e as leis nacionais.
Jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça sublinha a gravidade das falhas na cadeia de custódia.
Casos paradigmáticos, como o HC 598.051/SP, evidenciam como irregularidades na cadeia de custódia comprometem não apenas a validade das provas, mas também a credibilidade de todo o processo investigativo.
No AgRg HC 829.138/RN, o Superior Tribunal de Justiça destacou que a falta de registros claros mina a confiabilidade das provas e coloca em xeque a imparcialidade do julgamento.
No caso RHC 174.325, o Superior Tribunal de Justiça declarou a ilicitude das provas devido às irregularidades no manuseio de elementos e provas digitais, reafirmando a necessidade de observância rigorosa à cadeia de custódia.
A reflexão ética que permeia a cadeia de custódia é clara: a exclusão de provas ilegais não é uma questão de conveniência, mas de obrigatoriedade constitucional. Permitir que evidências obtidas de forma irregular sustentem decisões judiciais é aceitar a contaminação do sistema de justiça como um todo. O desentranhamento dessas provas é um passo essencial para preservar a moralidade e a credibilidade do Estado de Direito.
Investir em soluções tecnológicas é um caminho indispensável. A criação de centros de excelência em perícia digital pode transformar a realidade da cadeia de custódia no Brasil, oferecendo padronização, capacitação e desenvolvimento de tecnologias alinhadas às necessidades do país. Esses centros poderiam atuar na capacitação técnica de profissionais, desenvolvimento de padrões nacionais.
Além disso, auditorias regulares, tanto internas quanto externas, devem ser realizadas para garantir transparência e rigor no cumprimento das normas. A propósito, o Ministério Público tem como função institucional exercer o controle externo da atividade policial.
Sem uma cadeia de custódia confiável, a justiça se torna ilusória. Em um momento em que a tecnologia avança mais rápido do que as instituições, repensar a cadeia de custódia é reafirmar o compromisso com a verdade e com os direitos fundamentais.
Ao tolerar violações na custódia, o sistema judicial compromete sua essência, permitindo que abusos substituam a justiça e a imparcialidade. Aceitar provas contaminadas por violações na custódia é admitir um sistema corrompido, onde a verdade e a justiça cedem lugar à arbitrariedade e ao abuso, minando o Estado de Direito e pavimentando o caminho para a degradação do sistema judicial.
A justiça que todos desejamos começa pelo respeito às bases que a legitimam. Sem a preservação da cadeia de custódia, a justiça não é apenas ameaçada; ela deixa de existir.
Fernando Faria, é advogado com especialização pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Cursa Mestrado em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). É ex-servidor concursado do Ministério Público de Mato Grosso, tendo desenvolvido suas funções na Procuradoria-Geral de Justiça. Tem histórico de atuação profissional em casos de grande complexidade e de repercussão nacional.