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Opinião

A “pejotização” das relações de trabalho: fraude e precarização

Carla Reita Faria Leal e Emanuelle Lopes Lelis

A “pejotização” tem sido discutida com crescente preocupação nos últimos anos no mundo do trabalho. Amplamente difundida em diversos ramos e setores da economia, como na área hospitalar, de informática, de marketing e de comunicação (escrita, radiofônicas, televisivas e veículos de comunicação virtual), assim como na indústria de entretenimento (televisão, cinema, teatro), o fenômeno consiste na contratação de trabalhadores como pessoa jurídica (PJ) em vez de contratá-los como empregados formais, sujeitos às normas previstas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
 
Em outras palavras, por meio do processo de “pejotização”, o empregador exige que o trabalhador constitua uma pessoa jurídica, normalmente empresa individual, para a sua admissão ou permanência no trabalho, formalizando-se um contrato de natureza comercial ou civil, com a consequente emissão de notas fiscais pelo trabalhador, não obstante a prestação de serviços revelar-se como típica relação empregatícia.
 
Assim, a despeito de encontrarem-se em uma relação, na qual se verifica a caracterização de todos os elementos fáticos-jurídicos do contrato de trabalho, conforme dispõem os artigos 2º e 3º da CLT, as empresas dissimulam esta situação com a formalização de contrato de prestação de serviços firmado com pessoa jurídica constituída pelo empregado, cenário que constitui verdadeira fraude trabalhista.
 
Por esse motivo, é um equívoco comparar tal prática com a terceirização regulada por lei, pois, enquanto na terceirização há a efetiva triangulação das atividades entre a contratante, a empresa contratada e o empregado que vai desenvolver o trabalho, na "pejotização" o trabalhador será, a um só tempo, a empresa contratada e o prestador de serviços, ou seja, ocorre a verdadeira conversão de um CPF num CNPJ.
 
O Supremo Tribunal Federal reconhece a legalidade de outras formas de relação de trabalho que não a relação albergada pela CLT (trabalho por meio da terceirização; parceria entre salões de beleza e profissionais do setor; a própria contratação de profissionais liberais como pessoas jurídicas; os motorista de aplicativo e plataforma; o transportador de carga autônomo; os franqueados, dentre outros), contudo, essa flexibilização não implica na permissão para o desvirtuamento da modalidade contratual pactuada, como ocorre na “pejotização”.
 
Se uma empresa opta pela contratação mediante pessoa jurídica, devem ser respeitados os princípios que orientam a atividade autônoma, e não pode haver imposições conflitantes com essa figura, caso contrário a contratação na referida na modalidade servirá somente para mascarar o vínculo empregatício que existe na prática e assim frustrar a ampla proteção aos direitos dos trabalhadores.
 
Nesse ponto, observa-se que o objetivo primordial das empresas com a “pejotização” é afastar a aplicação das normas trabalhistas protetivas da relação de trabalho firmada com seus trabalhadores, sob o fundamento de que a legislação é muito rígida para os padrões contemporâneos do mercado de trabalho, o que as leva a contratar por meio desta modalidade.
 
Tal “estratégia” acaba por gerar inúmeras vantagens para a empresa, uma vez que a contratação de pessoa jurídica implica em menos encargos trabalhistas, fiscais e previdenciários, diminuindo seus passivos e suas obrigações e, consequentemente, propiciando-lhe maiores lucros.
 
A princípio, a contratação como pessoa jurídica também atrai os trabalhadores, principalmente em razão do valor da contraprestação oferecida pelos contratantes, que, em regra, costuma ser maior do que aquele ofertado em relações regidas pela CLT, uma vez que o tomador da mão de obra argumenta que a redução do pagamento de impostos possibilita o aumento do valor da remuneração.
 
Contudo, este aumento é mascarado por uma série de desvantagens muitas vezes não previstas, que consistem, basicamente, na completa ausência dos direitos trabalhistas básicos assegurados aos empregados formais, tais como: férias remuneradas, 13º salário, FGTS, seguro-desemprego, horas extras, direitos concernentes a ocorrência de acidente de trabalho, entre outros direitos garantidos pela Lei ou em acordos e convenções coletivas, além da proteção previdenciária.
 
Outro ponto relevante é o impacto da “pejotização” na qualidade de vida dos trabalhadores. Muitas vezes aqueles contratados como PJ são submetidos a jornadas de trabalho extenuantes, sem direito a horas extras ou períodos de descanso adequados, em busca de aumentar sua remuneração. Isso pode levar a problemas de saúde física e mental, como estresse, ansiedade, Síndrome de Burnout e até mesmo quadros depressivos.
 
Assim, é essencial que essa problemática seja divulgada e enfrentada com seriedade e determinação pelos movimentos sociais, sindicatos, acadêmicos, bem como combatida pelos Tribunais pátrios quando evidenciada a simulação fraudulenta por trás da “pejotização, de modo a coibir a expansão da prática e resguardar a núcleo mínimo de proteção ao trabalhador.
 
Carla Reita Faria Leal e Emanuelle Lopes Lelis são integrantes do Grupo de Pesquisa sobre o meio ambiente do trabalho da UFMT, o GPMAT.
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