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Opinião

Quão “smart” uma cidade pode ser?

Marcus Aquino

Os smartphones abriram caminho para uma família de smarts. Vieram na sequência a smartTV e, mais recentemente, o caçula smartwatch. Na real, telefone, televisão e relógio. Só que inteligentes. Todos capazes de muitas, muitas coisas, inclusive fazer uma ligação, passar uma novela e mostrar as horas. No meu tempo só havia o Maxwell Smart; o Agente 86 da série de televisão, lembra? Ele tinha um sapato que virava telefone. Discado!

O tom é de brincadeira, mas o assunto é sério.

No debate público acerca do futuro (e do presente) das cidades entra em cena a Smart City ou Cidade Inteligente. Para quem atua na área da política urbana ou nas políticas setoriais relacionadas, já se acostumou com os diversos eventos, publicações,“cases” e derivações (Smart Gov, Metas Smart) que a promovem.

Apresentada desta forma, relacionamos de imediato o conceito de cidade inteligente aos meios e processos tecnológicos que aprimoram a gestão e o planejamento de uma cidade e, de fato, a tecnologia desempenha um papel fundamental na representação do espaço urbano em meio digital. A tomada de decisão na gestão municipal em muitos casos requer a celeridade que a tecnologia, por meio do consumo de informações em banco de dados georreferenciados, por exemplo, é capaz de disponibilizar com mais rapidez e eficiência que métodos que demandam tempo maior.

Por meio de softwares de inteligência geográfica é possível simular e avaliar diferentes cenários de uso e ocupação do solo, trabalhar com mapas digitais de diferentes temas, alterar e sobrepor camadas de informação, editar atributos, desenhar, acrescentar imagens produzidas por drones ou por satélites, enfim, funcionalidades que há tempos suplantaram nosso bom e velho mapa físico (papel) nas análises e tomada de decisão. Mas a tecnologia, embora imprescindível, é meio e não finalidade. E é um aspecto da inteligência que algumas cidades já utilizam faz alguns anos aqui no nosso estado. Meu ponto aqui é outro.

Inteligência é um atributo humano. E é natural. Embora a artificial seja surpreendente hoje e possa nos surpreender ainda mais no futuro, mas aí já é outra conversa. Fato é que, sem abrir mão da tecnologia, a cidade pode ser inteligente com escolhas, decisões e ações, digamos, “off-line”.

Enquanto não entregamos o planejamento das cidades a algoritmos, esta tarefa continuará sendo de pessoas. E aí entra outra questão: em que medida a cidade é produzida “para pessoas”? Ou para quais pessoas?
Não bastassem problemas há muito existentes nas grandes cidades e regiões metropolitanas – supressão vegetal, impermeabilização do solo, degradação do patrimônio histórico e arquitetônico, mobilidade, expansão urbana desordenada e insensata, etc., convivemos agora com o ‘novo normal do clima’ nos impondo a necessidade de adaptação a eventos cada vez mais recorrentes.

Aquela desinteligência urbana tradicional, além de contribuir para a ocorrência de desastres, se reproduz e opera com desenvoltura também em pequenas e médias cidades brasileiras. Dados do Ministério das Cidades apontam quase 2 mil cidades suscetíveis à ocorrência de deslizamentos, enxurradas e inundações e cerca de 9 milhões de brasileiros vivendo em áreas de risco.

Outro dado levantado pelo jornal Folha de São Paulo, aponta que das 27 capitais brasileiras, 15 não tem plano de mudança climática, plano de prevenção de desastre, de mitigação ou de adaptação a eventos extremos. Caso de Porto Alegre, que sequer tem no seu Plano Diretor a agenda da adaptação onde o plano de contingência teria lugar.

Quando observamos um mapa de Mato Grosso, de relevo ou de elevação 3D, temos uma nítida visualização da baixada cuiabana, domínio geoambiental cientificamente denominada depressão cuiabana. Nessa visualização podemos perceber claramente o ‘corte’ no relevo do planalto que são as encostas da Chapada do Guimarães e uma ampla extensão de planície onde se destaca o rio Cuiabá e as manchas urbanas da capital e Várzea Grande.

Esta visualização nos permite imaginar a suscetibilidade das cidades e região metropolitana por se tratar de uma planície alagável entremeada por córregos e ribeirões antropizados. Ainda que a Usina de Manso regularize os ciclos de cheias e secas do rio Cuiabá, podemos imaginar as consequências de um evento extremo como o excesso de chuva nesse território. E estamos falando de apenas um evento climático, pois as ondas de calor extremo associada a baixa umidade favorece a ocorrência de incêndios, que podem vir a ocorrer em maior escala em áreas urbanas.

Opino não como especialista, mas como cidadão interessado no assunto. Posso e gostaria de estar enganado. Tomo a perspectiva urbana sem pretender esgotar o assunto que é complexo e multidisciplinar.
Cabe às cidades, neste momento, a inteligência de realizarem o básico e o essencial antes mesmo do inovador e do extraordinário, conhecendo bem as suas suscetibilidades, mapeando e normatizando as áreas com aptidão à urbanização, promovendo a adaptação do espaço urbano às mudanças climáticas, adotando seus planos de ações climáticas e planos municipais de redução de risco.

De acordo com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN), capitais como Recife, Salvador e Santos já possuem os seus planos e dão algum parâmetro para o Brasil.  Medidas de mitigação dos riscos, como o conceito de Cidades-Esponja desenvolvido pela Universidade Técnica de Delft, na Holanda e o de soluções baseadas na natureza apresentado pelo Cemaden, podem contribuir para centros urbanos mais seguros e resilientes.

Ao mesmo tempo, necessitamos redefinir a nossa relação com a natureza, realizando mudanças de comportamento. A postura individualista e exclusivista deve dar lugar a um ponto de partida coletivo. Ao conceber e construir políticas de segurança, respostas e soluções que encontrarmos a partir do coletivo, farão muito mais sentido para o território e para garantir a dignidade da vida. Basta olhamos para o que acontece no Sul do país.

Quando a catástrofe chega, sem energia elétrica e sem rede de espécie alguma, não tem IA que dê jeito.
 
Marcus Galérius Aquino é servidor público do Estado de Mato Grosso.
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