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Opinião

Sobre a minha cidade

Rafael Detoni

No mês em que Cuiabá comemora seus 300 anos de fundação trago 3 perguntas: De quem é a cidade? A quem ela pertence? Quem deve usufruí-la?

Ao andar pelo centro da cidade me deparei com placas de “aluga-se” ou “vende-se” anunciando a morte lenta do comércio local. Algo semelhante desperta a atenção quando tiramos os olhos da pista e focamos nos estabelecimentos comerciais ao longo da Avenida Historiador Rubens de Mendonça (a Avenida do CPA). O cenário de instabilidade político-econômica empresta sua parcela de contribuição, sem dúvida, mas há um outro elemento que acelera a decadência deste comércio: na rua sobra carro e na calçada falta gente.

Comércio de rua, pelo próprio nome, só tem movimento quando há gente passando em frente e não apenas carros. Ruas como a Pedro Celestino, Campo Grande, 13 de Junho, Voluntários da Pátria e Cândido Mariano tem espaço para automóvel em circulação e estacionado, porém, não provê calçadas com larguras suficientes para acomodar um poste e uma pessoa ao mesmo tempo. Não há árvores e as únicas sombras na região são produzidas pelos próprios prédios no início da manhã ou no final da trade.

Um carro estacionado em frente à loja não se traduz em fluxo de pessoas e, consequentemente, não movimenta a economia. Pelo contrário, resulta em uma área aproximada de 6,5 metros quadrados ocupada geralmente por uma única pessoa (o motorista) e que mesmo assim não permanece no local. O comércio morre pela falta de gente circulando em detrimento da oferta das vagas de estacionamento gratuito na rua.

No ano 2000, Cuiabá possuía 483.346 habitantes para uma frota de 120.658 veículos. Passados 18 anos, a população estimada pelo IBGE é de 607.153 habitantes para uma frota de 418.760 veículos segundo dados do DETRAN/MT. Ou seja, há 18 anos atrás tínhamos a proporção de 01 veículo para cada 04 habitantes e hoje alcançamos o índice de 02 veículos para cada 03 habitantes. Neste período a população cuiabana cresceu 25,6% enquanto a frota aumentou em 247%. Neste ritmo é impossível prover sistema viário que suporte essa variação.
 
Falando em sistema viário a cidade apresentou nestes anos muito menos em expansão da malha estrutural, aquela constituída de vias com alta capacidade interligando diferentes regiões da macrozona urbana. Nestes 18 anos ficamos limitados apenas à construção da Avenida das Torres e, nos demais casos, trata-se de alargamentos e duplicação de vias existentes como Archimedes Pereira Lima, República do Líbano, Juliano Costa Marques, MT 251, MT 010 (ainda inconclusa), Dante de Oliveira (apenas um trecho), Avenida Antártica, entre outros. No mais, foram tratamentos pontuais como aplicação de sentido único, eliminação de estacionamentos ao longo da via, implementação de direitas livres e as ditas “obras da Copa”, dentre as quais destacam-se as trincheiras e viadutos na Avenida Miguel Sutil. Ações pontuais que em pouco tempo sucumbem ao elevado crescimento da frota.

Para o transporte coletivo ficamos no “mais do mesmo”, exceto pelos 10,7 km de faixas quase exclusivas que ajudaram no desempenho da frota, pela entrega recente das estações Alencastro e Ipiranga no centro, pela instalação de alguns poucos novos abrigos e pelo aumento pouco perceptível de frota com ar-condicionado. Enquanto isso, do outro lado da Prainha, na histórica Praça Bispo Dom José, usuários do transporte público se confundem em meio a vendedores de água, churrasquinho, cachorro quente, churros, etc. Na 13 de Junho, a rua “empresta” suas calçadas para os comerciantes exporem seus produtos em meio à disputa de espaço com os ambulantes e tudo acontece com anuência da (des)ordem pública.

Nas ações para pedestres e ciclistas reina o silêncio!!!

Na cidade sem um Plano Diretor de Mobilidade Urbana, a ausência de políticas públicas bem definidas a curto, médio e longo prazos dá lugar às soluções pautadas no (des)conhecimento sobre o tema e baseadas apenas da experiência sensorial que, via de regra, se convertem em ações que andam na contramão da mobilidade sustentável e jogam Cuiabá ainda mais para o abismo. Na Cuiabá dos 300 anos planta-se vagas de estacionamento nos canteiros centrais para atender a vontade de estabelecimentos privados, invés de árvores, e faz da via pública uma extensão do seu comércio sem recolher nenhum centavo a mais no IPTU. Cito dois casos recentes como a Avenida Mato Grosso, no centro, e a Avenida das Palmeiras, no bairro Jardim Imperial, onde o que restou de canteiro tem largura suficiente para acomodar uma palmeira e nada mais. Não me causará espanto se em poucos dias tivermos praças sendo reduzidas para dar lugar aos estacionamentos em áreas mais nobres da cidade.

No quesito mobilidade urbana, a mesma gestão que prega pela humanização peca ao atuar demasiadamente em favor da máquina quando cobre os buracos no leito carroçável, porém ignora a remoção das barreiras (obstáculos, buracos, desníveis, mato, lixo e carros) que limitam o caminhar nas calçadas; destrói canteiros transformando-os estacionamentos e não amplia as calçadas a fim de prover o plantio de árvores que futuramente tragam sombra e amenizem o calor escaldante dos meses de agosto a novembro; aplica 15 milhões de reais em inteligência artificial nos semáforos para reduzir os congestionamentos, mas ignora a programação de tempos de travessias dedicados aos pedestres nos cruzamentos.

Investir na expansão da infraestrutura viária é uma necessidade para a capital nos próximos anos, sabemos, mas apenas isso não será suficiente para tirá-la do congestionamento e devolver mobilidade aos seus mais de seiscentos mil habitantes.

A Cuiabá dos 300 anos ainda maltrata seu pedestre e àqueles que fazem uso do transporte coletivo, que não conseguem se fazer ouvir na mesma altura daqueles que reclamam quando o trânsito não anda ou quando não encontram uma vaga para estacionar onde desejam. Mas há esperanças!!!

Emprestei do Gabriel o título desse artigo. Um garoto de 14 anos pertencente à classe média, usuário do transporte coletivo, e que nesta semana satirizou em sua rede social a jornada de atravessar a Avenida do CPA, mostrando calçadas destruídas e o mal funcionamento do foco verde do pedestre com o boneco “apressado”. O vídeo de 10 segundos mostra a inversão dos valores fazendo notar que há muito desequilíbrio na oferta do espaço público entre os motorizados e os não motorizados. As vozes silenciosas das calçadas começam a se manifestar e quem sabe, bem antes dos 600 anos, possamos ver pedestres consumidores de volta às ruas fomentando a economia do centro e protegidos do sol escaldante num dia da primavera cuiabana.
Afinal de contas, a quem pertence a cidade?
 

Rafael Detoni é Arquiteto Urbanista e Consultor em Transportes.
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