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Opinião

O Ofício

Eustáquio Rodrigues Filho

O Secretário de Estratégias Estratégicas do estado de São Gardenal, Policarpo Quaresma, resolveu, monocraticamente, acabar com o loteamento de vagas de estacionamento que empesteava o órgão. Ficou irritado ao passar pelo estacionamento e ver vagas reservadas para cargos que ele nem sabia que existia. Chamou sua secretária e mandou fazer um ofício circular informando que dali em diante não haveria mais vagas privativas para ninguém. Seriam de quem chegasse primeiro. Era o início de uma nublada manhã de segunda-feira.

A secretária do Secretário, a prestativa Dona Clarice, primeiramente inseriu as fotos da balada do fim de semana no Facebook e, no fim da manhã, se dirigiu ao servidor José de Alencar e solicitou que ele redigisse o documento. Este, muito solícito, disse que redigiria o ofício à tarde, assim que voltasse do almoço. No fim da tarde, José de Alencar dirigiu-se até Dona Clarice e perguntou a ela qual seria o assunto do ofício. Sabedor do assunto, prometeu o ofício para a manhã do dia seguinte.
No fim da manhã seguinte, como prometido o ofício estava pronto e José de Alencar foi entregar o fruto do seu trabalho. Entretanto, Dona Clarice já tinha ido embora e voltaria somente após as 15h. No fim da tarde de terça-feira o ofício foi entregue para Dona Clarice.

Quarta de manhã, Dona Clarice iria devolver o ofício a José de Alencar, pois estava com a data errada, afinal estava com a data de terça e precisava estar com a data de quarta. No entanto, José de Alencar estava ausente e só viria à tarde. Dona Clarice, então, pediu ao colega de José de Alencar, o quase aposentado Senhor Castro Alves para que corrigisse o ofício. Este informou, solenemente, à Dona Clarice que isso não fazia parte de suas atribuições e que ela esperasse José de Alencar retornar do almoço. À tarde, com o retorno de José de Alencar, o ofício poderia ser finalmente corrigido. E o foi.

Na quinta, logo cedo, José de Alencar devolveu o ofício (agora com a data de quinta, pois ele já estava esperto) para Dona Clarice e esta submeteria o papel ao glorioso e rigoroso Secretário, mas este estava viajando e retornaria apenas na sexta.

A semana voou! Sexta de manhã o Secretário Policarpo Quaresma estava lendo o ofício e pediu pra Dona Clarice consertar o espaçamento entre as linhas, pois estava com espaçamento 1,5 e ele queria espaçamento 2,0. Novamente, Dona Clarice se dirigiu à mesa de José de Alencar e este havia saído para fumar e tomar um café. Como o ofício era urgente, ela pediu a outro colega, o Gonçalves Dias, para que corrigisse o espaçamento. Porém, Gonçalves Dias não poderia ajudar naquele momento, pois estava envolvido com outra demanda importantíssima: estava fazendo uma C.I (comunicação interna) pedindo novos copinhos de café para a sala e isso demandaria toda aquela manhã. O que ele não sabia é que foi decretada a economia de copo de descartável e o fornecimento desses copos só retornaria quando a economia fosse suficiente para pagar a RGA dos servidores: ou seja 300 milhões de reais em copinhos economizados. Dona Clarice teve que sair mais cedo, pois teria que levar Lord Byron – seu cachorrinho de estimação – ao veterinário. O problema é que Lord Byron escapou de sua mão no estacionamento do veterinário, foi atropelado e ela teve que passar a tarde toda acompanhando seu querido pet que estava convalescendo.

Bom, segunda de manhã da outra semana, todos renovados e cheios de energia, com certeza o ofício sairia naquele dia. Dona Clarice se encontrou com José de Alencar e este corrigiu o espaçamento, devolvendo o ofício para Dona Clarice no início da tarde de segunda. Esta ficou feliz, pois finalmente poderia liberar o ofício. Mas no dia seguinte apenas, pois naquela tarde ela iria postar as fotos da balada do fim de semana no Facebook e além do mais a impressora parou de funcionar.

Terça de manhã, logo cedo, Dona Clarice liga para o Chefe de Gabinete, Senhor Casimiro de Abreu, a única pessoa no universo que tinha numeração de ofícios novos. Quando ela ligou ele estava em outra ligação e a secretária dele, a ex-miss Cora Coralina, informou que assim que ele terminasse a ligação ele retornaria. Não retornou durante todo o dia. Quanto à impressora, o Superintendente de TI, o Sr. Raul Pompeia, informou que para solicitar qualquer serviço de TI era necessário enviar um ofício em 3 vias.

Quarta de manhã, Dona Clarice ligou novamente para o Chefe de Gabinete para pedir o número de ofício, mas ele não havia ido trabalhar de manhã. Ela perguntou se ninguém mais poderia fornecer esse número, ao que responderam que a pasta com a numeração ficava num armário trancado e apenas Casimiro de Abreu tinha a chave. Mas Casimiro de Abreu tinha uma visita eleitoreira para fazer com o Governador de São Gardenal em alguns bairros da capital para inaugurar algumas ruas asfaltadas (na verdade não era para inaugurar as ruas asfaltadas, mas apenas as placas informativas que diziam que aquelas ruas seriam asfaltadas em 360 dias, ao custo de muitos milhões de reais). Ou seja, ele não iria à secretaria naquele dia.

Quinta de manhã Dona Clarice foi pegar Lord Byron, pois este havia recebido alta. Porém, à tarde, diligentemente ela estava no trabalho para pegar o número do ofício. Finalmente, Casimiro de Abreu passou o número do ofício (como se passasse os números sorteados da Mega Sena). Com o ofício pronto e impresso, (ufa!) ela foi até o gabinete do Secretário para colher sua assinatura. Mas ele não estava mais lá. Tinha ido embora mais cedo, pois quinta à noite é dia de presença obrigatória na Estância 21 com os outros secretários, o governador e os chefes dos poderes de São Gardenal.
Sexta de manhã, a primeira coisa que Dona Clarice fez foi entrar na sala do Secretário e mostrar o ofício para que ele assinasse. Ao que ele perguntou:
- Do que se trata esse ofício?
- O Ofício circular que acaba com as vagas privativas de estacionamento.
- E quem deu essa ideia?
- O senhor que decidiu isso semana passada.
- A senhora está louca. Nunca pensei em acabar com as vagas privativas.
E rasgou o ofício. Fim.
 
Essa semana foi aprovada no Congresso, em sede de Comissão, uma Lei que regulamenta a demissão de servidor público por insuficiência de desempenho. Alguns proclamam que seria o fim da estabilidade do servidor público.

A demissão por insuficiência de desempenho já está prevista na Constituição (inserida na Emenda 19) e estava pendente sua regulamentação. A questão da estabilidade é algo muito importante na vida de qualquer servidor público, muito embora ela não possa servir de proteção contra o baixo desempenho, incapacidade e/ou desídia do servidor. A estabilidade é um escudo contra maus políticos (a grande maioria no país) que a cada mandato, se não houvesse esse instituto, aparelharia o Estado com seus asseclas, cúmplices e comparsas. A Estabilidade faz com que o servidor se proteja desses maus políticos, seja inibindo sua ação eleitoreira, seja deixando o servidor seguro para recusar a cometer qualquer ato ilícito. Num país de corruptos como o nosso, a estabilidade ainda é essencial. Entretanto, uma melhor avaliação de desempenho – com critérios claros e objetivos – também se faz necessária, primeiro para evitar isso que aconteceu na ficção, mas também para evitar com que o cidadão seja vítima de um serviço ineficiente, irresponsável e grosseiro. Ambos, a estabilidade e uma melhor avaliação de desempenho, ainda são importantes e necessárias no país.

Tratemos esse tema com inteligência, respeito e honestidade.
 
Eustáquio Rodrigues Filho – Cristão, Servidor Público e Escritor. Autor do livro "Um instante para sempre". Instagram: @eepelomundo
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