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Opinião

Breves anotações sobre o Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (CONAD)

Carlos Rubens de F. Oliveira Filho e Felipe A. Martins

Na vida pautada pela pandemia da COVID-19, fica cada vez mais evidente a importância de abordarmos a questão da (des)continuidade das políticas públicas e de Estado e o seu impacto na vida cotidiana das populações a quem estão dirigidas.




Como as mudanças nas diferentes esferas da administração pública e a sua sazonalidade reverberam? Quais são os critérios para a continuidade, extinção, criação ou reelaboração de programas e medidas desenvolvidas e norteadas por uma política pública e/ou de Estado? Eles existem? Se existem, seriam eles avaliativos, ideológicos, técnicos?




No dia 24 de julho de 2020, o Diário Oficial da União nos surpreendeu com a Resolução nº 3 do Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (CONAD), órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. A resolução traça linhas para a internação em comunidades terapêuticas de adolescentes supostamente com problemas decorrentes do uso e abuso de álcool e outras drogas.




No entanto, uma resolução, que deve(ria) manter obediência à lei, não respeita os marcos regulatórios históricos, conquistados a duras penas, como as leis 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde) e a 8.069/90 (ECA –Estatuto da Criança e do Adolescente), a Lei 10.216/01 (Lei da Reforma Psiquiátrica) e a Portaria nº 3088/2011 do Ministério da Saúde (institui a RAPS-Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS).




Os pontos controversos são muitos e podemos apontar alguns deles por aqui.




Inicialmente, nota-se um caráter repressivo no teor da Resolução nº 3, como no artigo 6º, inciso XXVII, §1º, que insere um prazo máximo de internação de 12 (doze) meses. Ao leitor desatento, poderia tal fato ser uma garantia de que o adolescente não ficaria eternamente internado. Mas em uma análise sistêmica com o Estatuto da Criança e do Adolescente e até mesmo com o Código Penal, verifica-se que medidas com caráter punitivo e/ou penais são mais brandas e de duração menor.




Seguindo outra linha de análise, em uma tentativa de apagar a história, a Resolução nº 3 do CONAD sequer observa os princípios da Política Nacional da Atenção Básica e da Lei 8080/90, que dispõem sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, e trazem para o centro do debate alguns princípios como os da Territorialização, da Longitudinalidade do cuidado e da Participação da comunidade.




A internação de adolescentes em Comunidades Terapêuticas é prática comum no Brasil, muitas vezes determinada até mesmo por meio de decisões judiciais. E isso tudo antes da Resolução nº 3 do CONAD. No entanto, para a grande maioria dos estudiosos, tal prática age em oposição ao contido na Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216, em vigor desde 04 de abril de 2001), que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais (incluindo-se aqueles relativos às pessoas que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas) e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. E tal se dá, principalmente, em localidades mais afastadas de grandes centros urbanos, onde a rede de serviços públicos é quase inexistente, sendo ancorada pelo argumento de ausência de unidade/instituição de tratamento com tal finalidade.




No Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, por exemplo, realizado no ano de 2017 em parceria entre CFP (Conselho Federal de Psicologia), MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura) e PFDC/MPF (Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão - Ministério Público Federal), das 28 instituições fiscalizadas, em 11 delas havia a internação de crianças e adolescentes e, em outra duas, crianças e adolescentes residindo com as mães que estavam internadas. Aquilo que era incomum e inconstitucional, agora pode virar regra, ao menos diante da resolução do CONAD.




Como nos apontou o relatório de inspeção, nas Comunidades Terapêuticas (CT), em sua maioria, não existiam equipes médicas, enfermeiros, psicólogos ou qualquer outro profissional de saúde. São entidades de cunho privado, cujo tratamento é baseado em atividades de laborterapia para os internos (em muitos casos, um sinônimo para trabalho não remunerado), que consiste em serviços de limpeza, zeladoria, serviços gerais e segurança dos que se encontram internados/reclusos. Basicamente é a ideia do isolamento social, com uma ruptura dos vínculos externos e familiares.




Por outro lado, os CAPS-AD trabalham com equipes compostas por médico clínico geral e/ou psiquiatra, psicólogo, assistente social, enfermeiro e auxiliar de enfermagem, entre outros profissionais como terapeutas ocupacionais, oficineiros e redutores de danos. São equipamentos públicos pertencentes ao SUS. Por ter o caráter de base territorial comunitária encontram-se inseridos dentro dos bairros, ou seja, no território onde a pessoa vive, e atendem a população em modalidade de portas abertas. E nos locais onde não existem CAPS-AD ou mesmo qualquer serviço especializado, a atenção pode (e deve!) ser feita na Unidade Básica de Saúde, com a participação de toda a rede existente no local.




Ainda pelo âmbito jurídico, merece atenção analisar as atribuições do CONAD para tratar do assunto em tela, bem como da ausência de participação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), responsável por elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, fiscalizando as ações de execução, observadas as linhas de ação e as diretrizes estabelecidas no ECA.




Enquanto na resolução que cria o CONAD nada há que o habilite a tratar de políticas para crianças e adolescentes, mesmo em se tratando de políticas sobre drogas, tem-se que o Conselho atribuído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para tratar do tema sequer foi consultado. E isso pode macular a Resolução nº 3 do CONAD com um vício de legalidade que a invalidaria, por completo, diante de sua incompetência (no sentido jurídico) e falta de legitimidade para tratar do assunto.







Dentre os princípios que regem as medidas de proteção às crianças e adolescentes, previstos no ECA, está o da responsabilidade primária e solidária do poder público, que busca a plena efetivação dos direitos assegurados a crianças e a adolescentes por esta Lei e pela Constituição da República. Ora, se há um sistema público de saúde com obrigações dadas pela Lei 8080/90, a forma mais eficiente de atuação seria com o fortalecimento da rede de saúde e de atenção psicossocial. Sendo essa rede de natureza pública, seria garantida, ademais, a perenidade do serviço, o que não ocorre com o financiamento público de pessoas jurídicas privadas. Assim, o financiamento das comunidades terapêuticas seria antieconômico, ao final.




Parece que esta não é a percepção do governo federal. Se, em 2019, o subfinanciamento da atenção básica e dos serviços substitutivos de saúde mental foram constantes, em 2020, diante da notória necessidade de fortalecimento dos serviços de saúde pública, financiar pessoas jurídicas privadas em nada contribui para a melhora da atenção aos públicos mais vulneráveis da sociedade. Para se ter uma ideia, o IPEA (2017) identificou um total de 1963 CTs em todo o território nacional e o seu financiamento chegou ao valor de R$153,7 milhões em 2019, enquanto a verba destinada aos CAPS-AD (Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas) gira em torno de R$158 milhões. A previsão para o ano de 2020 é de que o investimento em CT´s supere os dos CAPS e outros serviços da Rede de Saúde. Talvez esse fato se materialize com a Resolução nº3 do CONAD.




Por fim, paira a dúvida: quais os caminhos dos nossos marcos regulatórios históricos na atual conjuntura? O devido acesso à Saúde e ao SUS se manterá como um direito!? E qual o nosso papel diante deste cenário?




Carlos Rubens de F. Oliveira Filho é Promotor de Justiça e especialista em Direito Público


Felipe A. Martins é psicólogo, membro da ABRAMD, mestrando pela Faculdade de Saúde Pública da USP, Conselheiro Executivo do Conselho Municipal de Álcool e Outras Drogas da cidade de São Paulo/SP
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