Olhar Conceito

Sexta-feira, 29 de março de 2024

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Ingeborg Bachmann: a peça "O bom Deus de Manhattan"

[Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos), este texto não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre estes artistas. Aviso feito, vamos à conversa de hoje.]

[Segundo aviso: aproveito o fato de morar na Alemanha para falar hoje e nas próximas semanas sobre autores de língua alemã e/ou autores brasileiros que tiveram alguma relação com a literatura em língua alemã. Ao final do intercâmbio voltarei à nossa literatura em língua portuguesa.]

Ingeborg Bachmann (1926-1973) é – ao lado de Heinrich Böll, Enzensberger e Günter Grass – a mais importante escritora da literatura do pós-guerra em língua alemã.

Bachmann é mais conhecida por seus poemas. O reconhecimento que recebera já no início de sua carreira tivera como base (de maneira geral) sua altíssima obra em prosa, mas hoje o leitor comum associa Bachmann mais aos seus poemas do que aos seus romances – em ambos os gêneros, no entanto, seus livros são hoje merecidamente parte do cânone literário germânico. Apesar disso, há outros aspectos de sua criação artística tão interessantes quanto a prosa e a poesia, a saber: seu teatro e seus ensaios (além dos libretti para óperas do compositor Hans Werner Henze, por exemplo.)

A obra de Bachmann ainda não encontrou (ou ainda não foi encontrada por) os olhos dos leitores de língua portuguesa. Poucos são os trabalhos de Bachmann traduzidos para a nossa língua (como no caso de boa parte dos escritores significativos do pós-guerra), o que é uma pena – não paraBachmann, mas para nós mesmo e nossas leituras.

Já tive a oportunidade e a felicidade de escrever sobre a poesia de Bachmann nesta coluna de jornal. Hoje, no entanto, conversaremos aqui sobre o teatro de Bachmann, talvez a parte de sua obra mais ignorada pelo público médio (não pelos críticos, que sempre viram e veem em Bachmann a grande e multifacetada artista que ela é).

,,Der gute Gott von Manhattan” (“O bom Deus de Manhattan”, 1958), peça radiofônica de Bachmann, é um texto atípico. Digo “atípico” por vários motivos, sendo um deles: a mescla do antigo com o novo – e o desenvolvimento do choque entre esses dois elementos (antigo e novo). Explico: ao mesmo tempo que 1) ele se passa numa movimentada, reluzente e abafada Manhattan contemporânea à escrita da peça, 2) o texto trata do “grande amor”, do amor que inunda a vida e a vida o amor de um modo que ao leitor contemporâneo esse “amor” soa “deslocado”, “fora de lugar”, “antigo”. A brilhante fagulha de genialidade da peça, no entanto, é exatamente essa estranheza: o “grande amor” é aqui problematizado, e a pergunta que fica é: “Há ainda lugar para este tipo de amor na sociedade capitalista ocidental no século XX?”

A mescla (ou confronto, ou embate, ou choque, ou tombo, ou briga) entre novo e antigo é, aliás, um dos pontos centrais da obra de Ingeborg Bachmann, seja na poesia, na prosa, no teatro ou no ensaio. Sobre isso já conversamos nos outros textos que escrevi sobre Bachmann. Ingeborg Bachmann parece querer atar as duas pontas do fio do tempo, a ponta do passado à ponta do presente; tenta sempre atar essas duas pontas já sabendo de antemão que não conseguirá. E dessa consciência de que não há e não pode haver harmonia entre os dois é que vem o grande estranhamento e o tom perturbador que toda obra de Bachmann tem. Bachmann busca a harmonia, mas nunca a encontra. Disso nasce a angústia de sua obra, o claro-escuro dela.

A genial obra de Bachmann é a busca e o fracasso da harmonia.

O choque entre o grande amor – o idealizado, o grande, o celeste amor – e o mundo mesquinho, rápido, escuro e sujo (maravilhosamente sujo, como é sempre o presente na visão do homem que nele vive) é o tema maior da peça ,,Der gute Gott von Manhattan”. Orfeu e Eurídice, Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Abelardo e Heloísa, Francesca e Paolo – os grandes casais da literatura ocidental (as personificações mesmas do amor que transcende a vida em direção à morte) são evocados na peça para que melhor se vislumbre o romance entre Jan e Jennifer, protagonistas da peça.

Além deles dois, são personagens centrais o bom Deus de Manhattan e um juiz. A peça toda se desenvolve em dois espaços/tempos: na sala de audiência, onde conversam o juiz e o bom Deus de Manhattan (homem que é acusado do assassinato de Jennifer); o segundo plano é o da história de amor entre Jan e Jennifer, que se desenrola em vários lugares e durante alguns dias (história nada leve ou agradável, mas sim doentia e inconstante).

O bom Deus de Manhattan é – como dito acima – um homem acusado do assassinato de Jennifer, e que recebeu esse “título” da população amedrontada de Manhattan e dos tabloides da ilha. O juiz que o interroga ouve do “bom Deus” a história entre Jan e Jennifer – que o “bom Deus”, ironicamente, conhece em detalhes (o grande deus onisciente, mas não tão onipotente – o motivo descobrirá quem ler o livro.)

Jennifer é uma jovem dos Estados Unidos que encontra e se apaixona por Jan, um jovem europeu instável e impetuoso. A fragilidade de Jennifer encontra o algoz e amado ideal na impetuosidade de Jan – e assim a história doentia de amor (não são doentias todas as grandes histórias de amor?) se desenvolve página após página, minuto após minuto na narração do bom Deus de Manhattan ao juiz. Mais eu não conto para não estragar a leitura dos que se dedicarão à peça de Bachmann.

Várias outras questões (além da questão do lugar do “amor transcendente” nos dias de hoje) interessantes são levantadas pela peça: a questão do patriarcado (na figura possessiva e ligeiramente doentia e inconstante de Jan); a questão da solidão do homem contemporâneo; além das várias referências literárias que Bachmann espalhou pelo texto (referências que não estão ali apenas para ornar, mas sim para dar pistas e enriquecer a trama e as questões abordadas nessa trama) como as referências a versos de Goethe e Dante, por exemplo.

A peça ,,Der gute Gott von Manhattan”, portanto, como todo bom texto literário pode ser decifrado através de várias chaves e de várias abordagens igualmente valiosas. Ingeborg Bachmann mostra outra vez as razões pelas quais se tornou uma das mais reverenciadas escritoras dos últimos 50 anos.

*A coluna Rubrica, publicada todas as segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista. Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).

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