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Sábado, 20 de abril de 2024

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Clarice Lispector: a estreia com "Perto do coração selvagem"

Danilo Bezerra

[Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos) não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que não é meu objetivo desenvolver aqui, e que não me caberia alcançar em meia página de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Aviso feito, vamos à conversa de hoje.]

Clarice Lispector (1920-1977) é provavelmente a mais popular das escritoras e dos escritores brasileiros do século XX; mas isso eu não precisava dizer: minha mania de falar o óbvio ataca aqui novamente.

Apesar de já ter publicado alguns anos antes textos em jornais, só estreou de fato com um livro completo em 1943, quando publica o romance “Perto do coração selvagem”.

“Perto do coração selvagem” é, então, um livro de estreia. E é, mais do que isso, um livro de principiante. Mas é o melhor que um artista poderia alcançar já num princípio de carreira. Quisera qualquer escritor principiante pisar pela primeira vez no montanhoso terreno da literatura brasileira com algo do nível de um “Perto do coração selvagem”.

Alguns parágrafos foram talhados já com uma consciência da escrita e do peso de cada palavra que fica difícil colocá-los qualitativamente abaixo daqueles dos livros posteriores. Leiamos, por exemplo, os três primeiros parágrafos do capítulo “Alegrias de Joana” do supracitado romance:

“A liberdade que às vezes sentia. Não vinha de reflexões nítidas, mas de um estado como feito de percepções por demais orgânicas para serem formuladas em pensamentos. Às vezes, no fundo da sensação tremulava uma ideia que lhe dava leve consciência de sua espécie e de sua cor.

O estado para onde deslizava quando murmurava: eternidade. O próprio pensamento adquiria uma qualidade de eternidade. Aprofundava-se magicamente e alargava-se, sem propriamente um conteúdo e uma forma, mas sem dimensões também. A impressão de que se conseguisse manter-se na sensação por mais uns instantes teria uma revelação — facilmente, como enxergar o resto do mundo apenas inclinando-se da terra para o espaço. Eternidade não era só o tempo, mas algo como a certeza enraizadamente profunda de não poder contê-lo no corpo por causa da morte; a impossibilidade de ultrapassar a eternidade era eternidade; e também era eterno um sentimento em pureza absoluta, quase abstrato. Sobretudo dava ideia de eternidade a impossibilidade de saber quantos seres humanos se sucederiam após seu corpo, que um dia estaria distante do presente com a velocidade de um bólido.



Definia eternidade e as explicações nasciam fatais como as pancadas do coração. Delas não mudaria um termo sequer, de tal modo eram sua verdade. Porém mal brotavam, tornavam-se vazias logicamente. Definir a eternidade como uma quantidade maior que o tempo e maior mesmo do que o tempo que a mente humana pode suportar em ideia também não permitiria, ainda assim, alcançar sua duração. Sua qualidade era exatamente não ter quantidade, não ser mensurável e divisível porque tudo o que se podia medir e dividir tinha um princípio e um fim. Eternidade não era a quantidade infinitamente grande que se desgastava, mas eternidade era a sucessão.”

É verdade que alguns outros parágrafos ficam muito abaixo destes e de outros do livro em questão e dos posteriores. Por isso escrevi no início da coluna que “Perto do coração selvagem” é um livro de estreia, e em todos os sentidos da palavra. A maturidade estilística que encontraria seus ápices em “Água viva”, “A paixão segundo G.H.” e “A hora da estrela”, para citar apenas três, ainda não se realiza integralmente em “Perto do coração selvagem”, mas já brilha sim em dezenas de momentos da narrativa, de modo a dar a ver a grande artista que ensaia ali os seus primeiros passos no terreno da literatura brasileira.

O próprio estilo narrativo vai se desenvolvendo durante o romance, alcançando níveis cada vez menos convencionais e mais inventivos ou experimentais: a organização sintática das frases vai ganhando liberdade maior e rasgando aos poucos e lentamente as amarras da escrita tradicional; as personagens vão se aprofundando e lidando umas com as outras de modo cada vez mais complexo; a história mesma vai se desprendendo do chão e alcançando alguns níveis etéreos e incertos até culminar no último capítulo, “A viagem”, que mais parece um vago quadro impressionista, no qual as frases vão se desmanchando em perfume e incerteza.

Do primeiro parágrafo ao último do livro (ou melhor: do segundo ao último, já que o icônico primeiro parágrafo já exibe muitas das técnicas mais avançadas que aparecerão ostensivamente no final da narrativa) há vários caminhos descritos: não só o das muitas personagens, mas também o do desenvolvimento do estilo da jovem autora.

Por fim, e para exemplificar o desenvolvimento estilístico que indiquei acima, reproduzo aqui o longo último parágrafo do livro, no qual as frases se encadeiam quase sem fim até a dissolução da narrativa, das personagens e do primeiro passo de Clarice Lispector.

“O que nela se elevava não era a coragem, ela era substância apenas, menos do que humana, como poderia ser herói e desejar vencer as coisas? Não era mulher, ela existia e o que havia dentro dela eram movimentos erguendo-a sempre em transição. Talvez tivesse alguma vez modificado com sua força selvagem o ar ao seu redor e ninguém nunca o perceberia, talvez tivesse inventado com sua respiração uma nova matéria e não o sabia, apenas sentia o que jamais sua pequena cabeça de mulher poderia compreender. Tropas de quentes pensamentos brotavam e alastravam-se pelo seu corpo assustado e o que neles valia é que encobriam um impulso vital, o que neles valia é que no instante mesmo de seu nascimento havia a substância cega e verdadeira criando-se, erguendo-se, salientando como uma bolha de ar a superfície da água, quase rompendo-a... Ela notou que ainda não adormecera, pensou que ainda haveria de estalar em fogo aberto. Que terminaria uma vez a longa gestação da infância e de sua dolorosa imaturidade rebentaria seu próprio ser, enfim enfim livre! Não, não, nenhum Deus, quero estar só. E um dia virá, sim, um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu fizer será cegamente seguramente inconscientemente, pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente lançada no que fizer que serei incapaz de falar, sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! o que eu disser soará fatal e inteiro! não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fundido, porque então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.”

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*Matheus Guménin estuda literatura alemã na USP, escreve sobre literatura para jornais do estado de Mato Grosso, é tradutor e escreveu um livro ainda inédito de poemas, que sairá entre 2016 e 2017.

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