Continuando no mesmo ritmo da coluna da semana passada, hoje comentaremos outro filme que tem no áudio um elemento de importância singular para a recepção, tanto no que se refere ao sentido das inserções e do tratamento do áudio, quanto na ambientação que este proporciona. Em tempos em que os filmes apostam cada vez mais no barulho, utilizando aportes publicitários comuns aos videoclips, O som ao redor soa discrepante e ousado, tecendo com zelo quase religioso a linha tênue do necessário.
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Assim como Truffout que escrevia e, posteriormente, realizava seus filmes, o pernambucano Kleber Mendonça Filho anda sobre os mesmos trilhos. Já reconhecido como crítico de vários veículos distintos, Kleber lançou o documentário Crítico (2008) e no início de 2013, seu primeiro longa de ficção O som ao redor. Com a proposta clara de detalhar e trabalhar o som em autonomia das demais atividades, ele cria para si uma nova possibilidade narrativa, o que é evidenciado pela sua assinatura do desenho de som junto ao Pablo Lamar. A iniciativa, dentre outras virtudes, permite uma certa irresponsabilidade narrativa da fotografia e direção de arte, que contribuí, e muito, para a construção autoral.
Não veremos aqui nem o silêncio das últimas obras de Haneke, nem as parcerias melodiosas estranhamente bem-sucedidas como de David Lynch e Angelo Badalamenti, ou de Alejandro Iñárrito e Gustavo Santaolalla. As sequências iniciais podem induzir o público a esperar uma linguagem de documentário, linguagem que logo acaba tomando forma através da fotografia e arte realistas, que lembram de longe o neo-realismo italiano, influencia contundente o Cinema Novo.
A história apresenta a rotina de uma rua num bairro de classe média, na cidade de Recife, possivelmente, próximo à praia. Os conflitos iniciais estão relacionados ao problema social da violência, um chamariz para a chegada suspeita e oportuna de uma grupo de segurança particular, logo identificamos como uma milícia. Liderados por Clodoaldo (Irandhir Santos, “Viajo porque preciso, volto porque te amo” e “Tropa de Elite 2”), os milicianos ganham a confiança dos moradores. O que poderia ser simplesmente, como num clichê de blockbuster americano, na chegada de um desconhecido no lugar, fica verosímil e pertinente diante dos motivos nada ocultos.
Os moradores parecem ser todos portadores de segredos e medos, e por vezes, medos de que os segredos sejam desnudados. E é aí que uma personagem chama a atenção. Ela é Bia (Maeva Jinkings), uma mãe de família que aspira com aspirador de pó a fumaça produzida pela maconha que fuma no trancafiada no quarto, masturba-se com a lavadora ligada para abafar seus gemidos e volta e meia “sai no tapa” com a irmã vizinha. No entanto, nada incomoda mais a dona de casa que o cachorro do vizinho, que late principalmente nas madrugadas. Após drogar o cão, ela arruma um aparelho eletrônico que emite frequências sonoras agudas que torturam o seu algoz animal.
Mais uma vez temos aqui uma classe média exposta ao ridículo, como a burguesia em O Anjo Exterminador (1962) de Buñuel. A ridicularização se dá pelo medo – e temos aqui um medo distinto dos filmes de terror que propõem de alguma forma experiências aterradoras durante as seções – o medo é visto de maneira mais confortável, o que não faz deste filme uma atividade se comparada a outros filmes dispostos a entreter, como boa parte dos filmes do gênero terror.
É preciso um pouco de paciência para quem está acostumado a estas produções. Paciência que é, logicamente, recompensada por este que é, até então, a produção nacional mais interessante de 2013. Isso porque, O som ao redor agrada e, mesmo sem muito barulho, consegue agredir. As situações que serão exibidas nos derredores dos sons fazem deste filme, uma obra para ser vista com olhos e principalmente ouvidos bem abertos.