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Terça-feira, 16 de abril de 2024

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Histórias de Natal: Desempregado já dividiu marmita com mendigo para ter ceia

Foto: Olhar Direto

Histórias de Natal: Desempregado já dividiu marmita com mendigo para ter ceia
“O Natal é só para quem pode”, diz Sandra, uma gari de 54, ao parar a vassoura e levantar a cabeça para mostrar o rosto que o boné esconde. Apesar de passar a maior parte do dia com os olhos no chão, ela sabe da existência dos enfeites e pisca-pisca das festividades de final de ano, mas eles não lhe despertam nenhum sentimento natalino. O mesmo ocorre com tantos outros mato-grossenses.

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Nessa véspera de Natal, o Olhar Direto saiu às ruas para ouvir “causos natalinos” dos cuiabanos, daqueles que batem perna no Centro ainda no sol a pino de 14h. Mesmo com uma cartolina anunciando “conte uma história e ganhe um doce”, poucas pessoas pararam para narrar suas histórias.

Algumas liam, flertavam com a frase, mas seguiam seu rumo. Em cerca de uma hora que permaneci sentada na Praça da República, comecei a apostar internamente quem era mais ignorado: eu ou os hippies com suas cangas estendidas e artesanatos à venda.

Foi quando de repente, Inivaldo Sebastião Matos, de 57 anos, apareceu e perguntou se a proposta do cartaz era verdade. Como narrador onipresente da sua vida, Inivaldo conta que está desempregado desde 2012, e relembra a sua última ceia de Natal – uma marmita dividida com um morador de rua.
 

“Ultimamente não estou trabalhando, estava ‘encostado’ recebendo um dinheirinho do governo, um benefício. Só que cancelaram meu benefício e estou lutando para requerer de novo”, diz Inivaldo, que trabalhou 17 anos na lavoura e agora tem problemas de saúde, o que o dificulta de exercer trabalhos braçais.

“O Natal é sempre ‘farturento’ (sic), mesa farta, comida à vontade, tudo quanto é coisa boa... Já era mais de 16h lá em Campo Grande, e eu não tinha almoçado, estava pensando no que eu ia comer, meu Deus. Sem dinheiro, sem nada, uma fome doida... ai eu cheguei em um ponto, e tinha um camarada com uma marmita. Ele comeu a metade da comida e me deu a outra. E eu pensei ‘meu Deus, estou comendo resto dos outros’... Mas eu tinha que comer pra não passar fome. E aí saiu água dos meus ‘zóio’, e chorei...”, conta.

Após falar da sua "ceia", Inivaldo pega alguns pirulitos do saco e reflete: “lá em casa, antes de eu sair de lá, a gente sempre riu muito, fazia um banquetinho, simples, mas fazia. Aí no dia de nascimento de Cristo, pra representar seus 33 anos, todo dia é especial, mas no dia do Natal é mais. A gente fica triste com isso. Eu acho que as pessoas têm direito de comer, de beber e não tem direito de passar fome. Qualquer ser humano”.

Identificando-se como um conversador nato, o vendedor Gustavo Campos logo entra em cena. Com a esperança jovial da casa dos 20 anos, ele vê a data como sinônimo de encontro e harmonia. “O melhor significado de Natal pra mim é a união, paz... É entender que cada dia que passa nessa vida, você tem sua família do lado, e geralmente as pessoas passam muito tempo desunidas. Mas no Natal une de novo”.
 

O conversador, que me ajuda depois a colher mais depoimentos, relata que o momento mais memorável do seu Natal foi dar um presente para um primo mais novo que precisava. “Eu não ganhei presente de ninguém, mas meu privilegio foi dar um presente pra alguém que eu sabia que ia ficar muito feliz. Um primo meu estava triste, porque não ia ganhar nenhum presente, e eu comprei umas roupas pra ele, embrulhei tudo e dei de presente. O sorrisão dele foi lá no ar, mas pra mim foi como um presente, entendeu?”.

Logo após os sinos da Igreja da Matriz dobrarem a canção “Noite Feliz”, Lauro Glauber aparece vendendo meias. Meio cansado de tanto andar pelo Centro – e um pouco de ressaca, segundo confessa -, ele decide contar o seu Natal mais memorável.

Apesar de ser uma data reconhecida como uma comemoração no antro familiar, quando tinha 21 anos, Lauro decidiu “fugir” dos parentes e foi para Chapada dos Guimarães com os amigos. “Fui sem avisar ninguém e todo mundo ficou preocupado. Bem no Natal e a pessoa some assim, do nada. Mas aí bem no finalzinho, eu consegui comunicar que estava voltando”, diz rindo, ao relembrar o momento.
 

“Estava eu e uns amigos, a gente foi pra mata, fizemos piquenique, essa coisa toda... E no final da historia, teve um que se perdeu ali na mata da Chapada e ficou um tempão perdido, umas 3 ou 4 horas nas trilhas... Mas no final deu tudo certo, a gente conseguiu achar ele e assim foi um momento meio difícil, mas depois bom”. Nas suas próprias palavras, ele finaliza dizendo que foi um “Natal misturado com aventura”.

Ainda que Lauro revelasse seu maior pedido, o de construir uma família para ano que vem, a conversa ganhou um ar de desalento quando Sandra apareceu e começou a falar. “Estou com salário e 13º atrasados. Os governantes não olham para nós. Passam o ano novo de branco, desejando novas vibrações... Eu vejo (aponta pro cartaz que diz ‘conte sua melhor história de natal’) esse Natal, e não tenho nenhuma história pra contar”. Para muitas pessoas, incluindo Sandra, a data pode ser definida com a seguinte frase da gari: “Natal pra mim é como beber um copo de água gelada. É um dia comum”.
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