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Quinta-feira, 28 de março de 2024

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Órfão de pai vivo: “não posso sentir falta daquilo que não vivi”

Foto: Reprodução

Órfão de pai vivo: “não posso sentir falta daquilo que não vivi”
Uma carta. Esta foi a forma que Murilo* encontrou para contar ao seu pai que se identifica como um homem transsexual, aos 35 anos, quando ainda não morava em Mato Grosso. Alguns dias depois, o pai, que sempre dava indícios de acreditar existir apenas homem e mulher cisgênero (pessoas que se identificam com o sexo biológico), o respondeu da mesma forma com uma carta nada animadora. Assim, Murilo se tornou um órfão de pai vivo.

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A primeira vez que Murilo ouviu esta expressão foi em um encontro com pessoas na mesma situação que a dele: foram abandonados por seus pais pelos motivos mais diversos. No caso de Murilo, foi por homotransfobia, em um momento que ele já morava sozinho e tinha estabilidade financeira. Aos 35 anos, Murilo iniciou uma transição considerada tardia, por isso decidiu contar para sua família.

Para o pai, Murilo decidiu contar por meio de uma carta em 2014. A decisão partiu do desejo de se sentir seguro o suficiente para poder dizer tudo o que queria de modo que não fosse interrompido até mesmo pelas suas próprias emoções. “Quando você escreve uma carta, você consegue controlar suas pausas e um pouco de emoção. [Já] em uma fala, você não [consegue]”, afirma ao Olhar Conceito.

“A expectativa está sempre lado a lado com a frustração”

“Fiquei bastante ansioso com relação a resposta porque eu não sabia qual seria a reação [dele]. A expectativa está sempre lado a lado com a frustração, obviamente. Criei expectativas porque você espera que a pessoa não meça o amor”.

A resposta da carta veio dias depois. Sempre se mostrando uma pessoa preconceituosa, o pai disse ao filho que “tudo bem” ser homossexual, mas a transsexualidade era algo inaceitável. Na carta, o pai ainda afirmou que não iria mais conviver com o filho e desde então eles não possuem um relacionando há oito anos.

O relacionamento entre Murilo e seu pai já não era dos melhores antes mesmo dele se revelar como um homem transsexual. O pai de Murilo faz parte de uma cultura patriarcal e machista, acreditando que no mundo há apenas dois gêneros e sexos. Por este motivo, o relacionamento dos dois sempre teve alguns ruídos até chegar no colapso total em 2014.

“Cada indivíduo tem o seu tendo de maturação. Algumas pessoas compreendem mais rapidamente. Outras levam mais tempo. Algumas podem levar uma vida inteira e não compreender. Essas pessoas foram filho ou filha de alguém, vem de uma cultura carregada de preconceitos e ela só reproduz. Ela não consegue refletir direito sobre aquilo porque para ela é o certo. Faz parte de sua cultura e sempre fez”.
 
“Não posso sentir falta daquilo que não vivi”

Ao longo dos oito anos, Murilo nunca tentou entrar em contato novamente como o pai, assim como ele não parece ter feito questão de procurar pelo filho. O contato entre os dois realmente cessou. “Eu sinto falta de uma relação que, na verdade, não existe. Se eu sinto falta de uma relação que não existe, para mim hoje não sinto falta alguma. Não posso sentir falta daquilo que não vivi”.

Recomeço?

Se a ausência do pai de Murilo se deu ao se revelar transsexual, a história de Pedro* com seu pai começa antes de se entender enquanto uma pessoa trans. O relacionamento dos dois já era distante na adolescência de Pedro, tanto que o viu pela primeira vez apenas aos 12 anos, por volta de 2009. Pedro só foi ver o pai novamente quatro anos depois e passou a morar com ele em 2018 por alguns meses, mas foi embora assim que conseguiu um emprego por não aguentar mais conviver junto.
 
“Ele nunca foi de abrir um sorriso para mim”

“Ele não ia aceitar, sempre fechava a cara [para mim]. Ele nunca foi de abrir um sorriso para mim por ser LGBT. Então resolvi sair de casa. Fui atrás de um emprego, morar com uma menina [namorada] e dividir as coisas para não passar mais o que eu passava”, relata em entrevista ao Olhar Conceito.

Quando Pedro começou o processo hormonal e fez a troca de documentos, optou por não contar ao pai, mas ele ficou sabendo por terceiros. À época, Pedro já não era mais considerado seu filho: “como eu troquei meus documentos, ele falava que não tinha filho, apenas uma filha, que no caso é minha irmã mais velha”, conta.

Com a chegada da pandemia do novo coronavírus, os dois voltaram a se comunicar por conta de uma intervenção da mãe. Por ser um período complicado, principalmente financeiramente, ela pediu para que o pai desse suporte ao filho caso fosse necessário. Pedro, entretanto, não queria sua ajuda, por querer, em primeiro lugar, que fosse aceito por quem ele é. Apenas após uma conversa com sua mãe que Pedro resolveu dar uma chance.

O contato entre os dois ainda é pequeno. São pequenos passos que estão sendo dados. “Na hora que ele precisar de mim, eu, enquanto filho, estarei aqui. Vou ajudar, como já fiz inúmeras vezes. Queria uma aproximação melhor com ele. Se não for possível, que ele saiba que quando precisar eu estou aqui”, finaliza.

“Não preciso mais mentir”

Homossexual, o radialista Giovanni Ojeda, de 25 anos, conseguiu trilhar um caminho contrário com seu pai, Celso Ojeda, da 58 anos. Giovanni contou ao pai que era gay também no ano em que a Copa do Mundo invadiu Cuiabá, em 2014, por estar cansado de mentir para ele sobre quem era e o que fazia. À época, aos 18 anos, ele estava namorando um rapaz e, para evitar possíveis problemas, mentia sobre onde ia e com quem estava saindo.

A mãe e a irmã foram as primeiras a saber. Meses depois, foi a vez de Celso. A reação do pai foi neutra, compreendendo e apoiando a orientação sexual do filho, mas sendo sincero ao dizer que precisaria de um tempo para compreender totalmente o que estava acontecendo, como também para conhecer com quem o filho estava se relacionando.

Apesar da reação neutra, Giovanni não conseguiu escapar de alguns pensamentos comuns daqueles que não fazem parte da comunidade LGBTQIA+. “É só uma fase. Isso depois passa”, dizia o pai, mas o tempo foi benéfico para os dois. Ao longos dos dias, semanas, meses e anos, Celso cada vez mais compreendia o filho, que hoje consegue levar livremente o atual namorado para a casa de seus pais. Celso, inclusive, faz questão do namorado participar de eventos familiares, como aniversários e festas de fim de ano.
 
“Ele me defende e defende outras pessoas LGBTQIA+ quando é preciso”

“Não preciso mais mentir. Pelo contrário. Posso ser 100%. Eu posso conversar com ele sobre isso. Ele entende já muito. Ele me defende e defende outras pessoas LGBTQIA+ quando é preciso”, finaliza Giovanni ao Olhar Conceito.

*Nomes fictícios para preservar as identidades dos entrevistados.
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