Há mais de 70 anos, a generosidade de Benedita Irene, a Dona Quita, e seu armazém, onde vendia “secos e molhados”, se misturou com a história do Centro Histórico de Cuiabá, onde a mercearia funcionava. Naquela época, a avenida Prainha sequer existia e os cuiabanos atravessavam uma ponte sobre o córrego. A quem passava pela mercearia, Dona Quita sempre garantia o melhor tratamento e até mesmo um prato de comida aos angustiados pela fome.
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Dona Quita nasceu em Chapada dos Guimarães (64 km de Cuiabá), onde viveu até se casar. Ela faleceu em 24 de abril, aos 95 anos e em Cuiabá, cidade em que escolheu fixar residência aos 25, teve três filhos biológicos e três adotivos, sendo que dois chegaram quando a generosidade de Dona Quita acolheu os sobrinhos que ficaram órfãos pela segunda vez quando Bárbara, mãe da quase centenária, faleceu.
A história da mulher “do signo de Áries, pioneira e cheia de dinamismo” é contada pela filha Benedita Enildes Correia, de 65 anos, que não desmancha o sorriso enquanto pesca as lembranças sobre a mãe.
Ela leva o mesmo nome da mãe, fruto de promessa feita pela irmã de Dona Quita. Apesar de ser mais conhecida como Enildes, a mulher esguia e de cabelos cor de caramelo não pensa duas vezes antes de dizer: “Benedita é a minha melhor parte”.
Dona Quita era a única filha de Vovó Babita, apelido carinhoso que recebeu dos netos. Enildes se orgulha ao dizer que faz parte de uma linhagem de mulheres fortes. Dona Quita precisou de força para, aos 25 anos, deixar o sítio, onde morava com o marido, e se mudar para Cuiabá. Com um acordo “de boca”, comprou o ponto da primeira mercearia fiado.
“Ela começou com um lugar pequeno, com a cara e a coragem. Um fornecedor que deu prazo para ela, ou seja, ela tinha um pouco de economia e conseguiu crédito para comprar o ponto fiado. Naquela época eles confiavam na pessoa, no histórico dela… Era assim, sem assinar nada, a palavra bastava. Ela contou que comprou e logo conseguiu vender tudo. Depois saiu de lá e foi para outro lugar com mais espaço”.
O primeiro armazém era localizado na Rua do Carmo, no bairro Baú, em Cuiabá. Enildes conta que a mãe ficou lá por pouco tempo, já que precisou de mais espaço e mudou a mercearia para a Rua dos Bandeirantes, perto da Igreja de São Benedito, no Centro Histórico. A filha de Dona Quita ainda tem memórias de quando o Córrego da Prainha existia.
“Quando começaram as obras da avenida Prainha, eles tiveram que sair dali, não tem mais nada lá… Tem uma casa na esquina, mas não é mais a casa deles, é onde era o vizinho. Eles mudaram para uma casa no bairro Bandeirantes, eles construíram lá. Mas ela sentiu, porque tinha uma história e o ponto era muito bom. Ela se adaptou”.
Dona Quita nasceu em Chapada dos Guimarães, mas fixou residência em Cuiabá com 25 anos e abriu uma mercearia. (Foto: Arquivo Pessoal)
Cozinha farta e rota da cuiabania
Enildes conta que, naquela época, todos se referiam aos armazéns de secos e molhados como “venda”. Não demorou para que a mercearia de Dona Quita crescesse ainda mais. Ela vendia produtos como arroz, feijão e itens de higiene pessoal, mas os produtos que chegavam direto do sítio do marido causavam alvoroço entre os moradores da região.
“Tinha o doce de leite e a rapadura de leite que meu pai fazia, tinha sabor único. Banana da terra, linguiça da mais perfeita qualidade… Meus pais prezavam pela qualidade. Tudo que vinha da fazenda do ‘xô Hélio’ era famoso, já tinha o dia certo de chegar e as pessoas ficavam esperando”.
Como o armazém ficava em uma região histórica, movimentada pelo ouro encontrado no Córrego da Prainha, afluente do Rio Cuiabá, personagens emblemáticos como Zé Bolo Flô, o cambista Raimundo, Dona Nhaxixa, Dona Epifânia, Otilia, Zaramela e Dona Zefa, passavam com frequência pela mercearia de Dona Quita.
De padres a prostitutas, por conta da presença de casas de prostituição na região, Enildes afirma que a mãe não fazia distinção e sempre tratava todos com respeito.
“Muitas coisas aconteceram naquele comércio. Seu Raimundo andava a cidade inteira e depois de um tempo virou pensionista de mamãe. Almoçava e jantava com ela. No Baú tinha os prostíbulos, depois da ponte [do Córrego da Prainha]... A casa de mamãe ficava nessa fronteira, que era passagem para o Centro e para a Matriz. Por ali passavam padres, freiras e prostitutas. Todo tipo de gente que poderia ser marginalizada”.
Antes do corpo de Dona Quita sentir fisicamente a passagem dos anos, quem chegasse para uma visita certamente a encontraria de fogão ligado, cozinhando, brinca Enildes. Generosa e uma “sublime anfitriã”, como define a filha, ela fazia questão de receber todas as visitas da melhor forma possível.
“Ela tinha uma gentileza para tratar as pessoas que era admirável, ela gostava de atender e de atender bem. Era algo muito sincero e autêntico. Fazia parte dela mesmo, porque ela era assim com as visitas, com os clientes. No velório, uma prima disse algo que definiu mamãe muito bem, ela disse: Tia Quita tratava todo mundo como um só”.
Na casa de Dona Quita, que ganhou o apelido carinhoso da mãe, que lhe chamava de “Quitinha”, também não faltavam doces de caju, goiabada e figo, além do bolo de cinco minutos que ela costumava fazer. As receitas da mãe ganharam espaço cativo no coração de Enildes, que rasga elogios para o bolo de arroz e de queijo que ela fazia.
“O bolo de queijo e de arroz dela eram muito famosos. Não é porque é minha mãe, mas ela conseguiu uma receita que o bolo de queijo dela se tornou incomparável, era muito diferente. Todo mundo gostava muito. Ela não vendia, mas fazia para a família, para os amigos, para as visitas. Ela fazia uma receita de bolo de arroz que era maravilhoso”.
Uma das filhas de Dona Quita aprendeu o modo de fazer o bolo de queijo da mãe, assim como Enildes. Maria Isabel e farofa de banana também não faltavam na casa da família.
“Era delicioso. Comida de mãe sempre tem um valor. O bolo de arroz não me aventuro, porque é mais complicado. Me lembro dela fazendo, deixando o arroz de molho de um dia para o outro… Era inigualável. Ela fazia outras coisas, tinha a mão boa para cozinha”.
Dona Quita, a generosidade em pessoa
Na mesma rua do armazém, por onde passaram personalidades da cuiabania, endinheirados e marginalizados, também passavam pessoas angustiadas pela fome. Para eles, Dona Quita nunca recusou um prato de comida.
“Me lembro de um homem em situação de rua que ia sempre aos sábados, outro ia praticamente todos os dias na hora do almoço… E ela dava. Era uma casa que sempre cabia mais um na mesa. Era uma coisa dela, essa generosidade. É uma qualidade do ser humano ser amoroso, generoso, compassivo, de forma natural, mas não é bem assim, isso falta muito”,
Enildes conta que a iniciativa de ajudar quem precisava era algo natural, que a mãe passou para os filhos com a mesma naturalidade. Sem precisar dar sermões sobre amor ao próximo aos filhos, Dona Quita apenas exercia sua generosidade.
“Você não vai resolver o problema do mundo, mas se toca ali no coração… Teve uma época que um jovem do Nortão se perdeu com drogas e começou a ir lá, perguntou se tinha o que comer. Foi uma vez, depois foi de novo, por fim terminamos ajudando ele a voltar para a cidade dele, conseguir falar com a mãe dele. As paredes eram testemunhas”.
Para filha, Dona Quita foi sinônimo de generosidade na Cuiabá de antigamente. (Foto: Arquivo Pessoal)
Enquanto morou na zona rural com o marido, Dona Quita também não deixou de olhar para os lados e ajudar quem precisava. Com sede de conhecimento, sempre sonhou em fazer segundo grau e depois faculdade. Não conseguiu, mas usou a educação que recebeu para alfabetizar crianças e adultos no sítio.
“Viveu pelo menos cinco anos lá. Ela tinha o primeiro grau, sempre foi uma aluna estudiosa e começou a ensinar. Ela queria seguir carreira, mas teve que cuidar da mãe… Terminou casando. Não ter feito o ensino superior foi uma das frustrações dela. Ela gostava muito de estudar, tinha sede de ter mais conhecimento e de aprender. Ela queria fazer uma faculdade, nunca disse qual curso, mas certamente seria uma boa administradora”.
Enildes conta que Dona Quita tinha medo de morrer e de “ficar parada”, já que sempre teve uma vida muito ativa. Enquanto a mãe estava internada na UTI, Enildes tentou ensinar exercícios de respiração para ajudar na ansiedade, técnicas que aprendeu na yoga e em viagens para a Índia. Ela lembra que, pela primeira vez, sentiu que a mãe tinha ouvido os ensinamentos.
“Na Índia aprendi o primeiro ensinamento que é aceitar a vida como ela é. Minha mãe um dia estava em casa, bem, do nada estava em uma UTI. Você quer colocar no colo e levar para casa, mas não pode. Meu pai lidava muito bem com a morte. Minha mãe queria viver eternamente e viveu quase 100 anos”.