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Quinta-feira, 05 de dezembro de 2024

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Cuiabá vivenciou drama durante epidemia de HIV/AIDS na década de 80: 'tratados como suspeitos e abandonados'

Foto: Arquivo pessoal

Cuiabá vivenciou drama durante epidemia de HIV/AIDS na década de 80: 'tratados como suspeitos e abandonados'
Na manhã de 17 de novembro de 1985, Elizeu Natal Merem, de 39 anos, morreu sozinho na casa em que morava na rua Tenente Alcides de Souza, no bairro Popular em Cuiabá. Mais tarde, pertences como cama e colchão foram queimados por vizinhos que temiam ser contaminados pelo HIV. No dia seguinte, em 18 de novembro, a notícia da morte estampou a capa do Jornal O Dia, impresso que circulou em Mato Grosso na época, onde Elizeu foi descrito como “suspeito de Aids”. 


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O registro serviu como uma das bases para a pesquisa desenvolvida pelo jornalista Marcos Salesse, de 25 anos, durante o mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO) na UFMT. Marcos se propôs a olhar para o passado ao investigar as vivências de homens gays na década de 80 em Cuiabá e Várzea Grande. 

Em “Jazz, maravilha, baratos e afins: Socialidade e Política entre homossexuais na década de 1980”, o recorte de jornal que narra a morte solitária de Elizeu, que foi cuidado por um vizinha em seus últimos dias e abandonado pela mãe adotiva que, ao saber que o filho poderia ter contraído HIV e desenvolvido Aids, a mulher comunicou a ex-patroa: "Se morresse, que enterrassem por aqui [em Cuiabá] mesmo sem ao menos lhe comunicar". 

Ainda na reportagem do jornal impresso, a vizinha que cuidava de Elizeu, Ana Maria de Campos, conta que o cabeleireiro morreu sem saber se o diagnóstico para Aids era positivo, já que ele fez dois testes, um positivo e outro negativo. Ele aguardava o resultado do terceiro exame quando foi encontrado morto quando Ana Maria entrou na casa para perguntar se ele já queria tomar café da manhã, algo que costumava fazer de forma rotineira. 

Marcos lembra que se emocionou no dia em que encontrou o registro durante as pesquisas para o mestrado. Ele explica que, durante o período em que se debruçou sobre os arquivos de jornais impressos da década de 80, encontrou muitas iniciativas como a de Ana Maria, em que a sociedade civil precisou se organizar para ajudar os que estavam doentes. 

‘Chorei bastante em casa, é muito pesado. A resposta para a epidemia do HIV e Aids foi majoritariamente feita pela sociedade civil, o Estado muitas vezes abraçou essas iniciativas como uma forma de dar uma resposta à epidemia. Posso citar a Casa da Mãe Joana, que nasceu inclusive na década de 80 e ainda lá virou um ponto de referência para repouso dessas pessoas que estavam doentes, mas nasceu de uma servidora pública que queria ajudar”. 

Apesar de não ser o único aspecto pesquisado por Marcos, ele explica que não poderia ignorar a questão do HIV/AIDS durante a década de 80 em Mato Grosso. Na época, os primeiros casos começaram a aparecer no Brasil, gerando preconceito contra homens gays, que eram tratados como “suspeitos” e, a qualquer sintoma de adoecimento, eram acusados de estarem “aidéticos”. 

“Na conversa com os entrevistados e também olhando para os jornais impressos, a gente percebe, primeiro, uma cobertura muito parecida com o que a gente tinha na cobertura nacional, ou seja, um novo problema de saúde, ainda com pouquíssimas informações, as pessoas não compreendiam muito bem o que estava acontecendo, e dentro daquela ideia de que existia um público específico que estava sendo atingido, que eram os gays, teoricamente”. 

Assim como o que era difundido pela mídia nacional, a ideia de “peste gay” também foi reverberada pela imprensa cuiabana. “Toda matéria que você vai pegar desse acervo que tenho, por exemplo, vai sempre assimilar a questão da AIDS ao público gay, quando eles falam da homossexualidade é muito importante entedermos que eles estão abarcando as travestis e os corpos trans, que na época não tinham essa identidade consolidada do ponto de vista teórico e conceitual”. 

Um dos entrevistados contou para Marcos que chegou a ir em cinco velórios de amigos no mesmo dia quando o AIDS atingiu o pico de casos em Cuiabá. 

“A busca pelo exame, que ainda era muito escasso e impreciso, também era um problema, muitas pessoas acabaram desenvolvendo a Aids porque tinham vergonha de buscar ajuda. Alguns entrevistados chegaram a falar que se você ia em uma unidade de saúde pedindo para fazer teste de HIV, era praticamente execrada, virava ‘um alienígena’, então como as pessoas teriam coragem de buscar o teste?”.
 

“Pelo direito de ser o que se quer” 

A experiência de mergulhar no passado foi algo que Marcos fez pela primeira vez durante a graduação, em pesquisas sobre como o AI-5 foi noticiado em jornais de Cuiabá. Em determinado momento, ele conta que teve a ideia de buscar questões LGBT+ nas notícias antigas. “Será que tinham matérias sobre homofobia? Como esses temas chegavam nos jornais impressos? Foi quando comecei a desenhar a pesquisa da minha monografia, que também foi sobre esse tema”. 

Boa parte das leituras encontradas por Marcos falavam sobre a década de 90 e início dos anos 2000, mas durante as pesquisas na Hemeroteca Digital, um artigo de opinião de página inteira intitulado como “Pelo direito de ser o que se quer”, chamou sua atenção para outro período em Cuiabá. Como já estava acostumado com a rotina de pesquisa nos impressos antigos, Marcos lembra ter achado um título forte para 1985. 

“Nela, as fontes eram uma travesti e dois homens gays que falavam sobre o que eles queriam, que era respeito a identidade deles, basicamente, mas tinha um subtítulo sobre a AGAYMAT, que era a Associação para Gays de Mato Grosso. Isso foi no Jornal do Dia, um impresso que circulou entre a década de 70 e 80, era uma edição diária, uma boa parte dele está na Hemeroteca Digital”. 

Graças ao artigo de opinião, Marcos enxergou a possibilidade de contar uma história que ainda não havia sido publicada, a da AGAYMAT, em seu trabalho de conclusão de curso. Quando levou a ideia ao orientador, o professor doutor Yuji Gushiken, ele entendeu o tamanho do desafio de descrever um cenário e uma década que não viveu, já que nasceu em 1999. 

A pesquisa começou no TCC com a análise dos jornais impressos e duas entrevistas com pessoas que viveram na década de 80, sendo um deles o colunista social Zacarias Costas, que propunha a criação da AGAYMAT no artigo publicado pelo Jornal do Dia na década de 80. No mestrado, Marcos continuou se aprofundando nas vivências culturais e políticas dos homens gays que viveram naquele período em Cuiabá e Várzea Grande. 

“Na monografia entrevistei duas pessoas e, na dissertação, foram seis. Elas foram importantes, porque a gente sabe que em um jornal ou em qualquer material jornalístico, ficam muito mais coisas de fora do que dentro, jornalistas sabem muito bem como é isso. Sabia que ao me guiar só pelo que estava escrito no jornal, eu contaria uma história incompleta, então decidi ir atrás de outras pessoas através de indicação de ativistas, foi-se criando uma rede”. 

Na pós-graduação, o desafio de desenhar o cenário LGBT+ na década de 80 se tornou ainda mais intenso. No início, por exemplo, Marcos conta ter buscado por registro sobre as vivências lésbicas, algo que não encontrou. 

“É importante falar, por exemplo, das lésbicas, é mais difícil ainda fazer essa pesquisa, porque nem os jornais impressos têm esse debate, durante a pesquisa, eu até tentei colocar algumas palavras-chaves para tentar localizar, mas não encontrei registros. Eles utilizam os termos ‘homossexual’ e ‘homossexualidade’ tanto para falar de homens gays, quanto das travestis, já que essa identidade trans na década de 80 ainda não tinha se consolidado, pelo menos em território mato-grossense”. 

“Apesar de que alguns desses bares, pelo contato que tive com alguns entrevistados, falaram que eram administrados por casal de mulheres algumas vezes, mas não tem nada registrado, então precisa alguém mergulhar nisso”, continua. 

Registro da exposição "Pelos Olhos da Pantera". (Foto: Henrique Santian) 

Jazz, Maravilha, Baratos e Afins 

As três palavras no título da dissertação de Marcos fazem referências às movimentações LGBT+ em Cuiabá e Várzea Grande. “Jazz” vem do bar Café Jazz, “Maravilha”, é uma alusão ao concurso Miss Maravilha, que hoje se tornou o Miss Gay, e “Baratos e Afins”, em referência a outro estabelecimento frequentado por esse público na cidade. A festa e os espaços em que elas aconteciam é uma das temáticas que o pesquisador aborda em sua dissertação. 

O professor Dori, responsável por criar o concurso Miss Maravilha na casa em que morava no bairro Jardim das Américas, foi um dos entrevistados de Marcos. Ele chegou a reunir 120 pessoas na residência onde aconteciam os shows de transformismo, já que o termo estadunidense “drag queen” ainda não era usado em Cuiabá. 

“Organizavam passarela, mesa, cadeira, cada competidora escolhia um estado para representar, às vezes conseguiam parcerias com lojas de tecido do Centro, na época o Sávio Pereira era estilista de sungas e roupas de banho, ele desenhou algumas roupas de banho para essas transformistas desfilarem. Eram iniciativas de sociabilidade e encontro muito nesse lugar do amadorismo e da intimidade, um pouco pelo medo do ataque mesmo, de questões de violência e homofobia, mas também porque não se tinha uma estrutura muito consolidada nesse período para se pensar uma grande boate ou um grande bar”. 

Durante a entrevista com Marcos, o professor Dori resumiu a inquietação que o levou a continuar realizando os concursos Miss Maravilha na década de 80. “Ele disse: ‘A gente queria ter um lugar para ir, Cuiabá não tinha, tivemos que criar, cavar’. Essa experiência do Dori é muito interessante também, porque a gente tinha muito esses movimentos de auto organização”. 

O Bar do Gringo, no Beco do Candeeiro, e a Boate Panteras, também eram frequentados pelo público LGBT+. No caso da Panteras, por exemplo, Marcos explica que homens gays do interior combinavam de se encontrar na rodoviária para curtir os momentos de festa no local. 

O Bar do Gringo, no entando, não nasceu com a intenção de ser um reduto LGBT+, como no caso da Boate Panteras. Criado por um argentino no Beco do Candeeiro, o local ficou marcado por ser frequentado por aqueles que, de alguma forma, estavam às margens. Algo que se assemelha com a realidade do espaço em 2024. 

“Era um cenário diferente do que vemos hoje, mas ainda sim dá para criarmos um paralelo desse lugar em que habitam as pessoas que a sociedade ‘não gosta’, não quer ver, quem está à margem”. 



Olhando para o passado 

O exercício de olhar para o passado é importante para pensar o futuro, ressalta Marcos, que ao ouvir os relatos dos seis homens gays que viveram na década de 80 em Cuiabá e Várzea Grande, conseguiu traçar paralelos com o momento atual das cidades irmãs. 

“O próprio exercício da escuta fez com que os entrevistados entendessem a importância da história deles, para também fazermos esse exercício do que avançamos e do que regredimos, porque para pensar estratégias para o futuro, a gente precisa olhar o passado, é indispensável para não cometermos os mesmos erros, por isso os museus são importantes”. 

Durante as entrevistas, por exemplo, muitos questionavam o jornalista sobre o motivo dele querer saber as histórias do passado ou se elas eram mesmo relevantes em 2024. “E é muito por desacreditar que são memórias importantes e é um registro que precisa ser feito, porque essas pessoas vão falecer, elas estão envelhecendo. O Zacarias Costa, por exemplo, fiz a entrevista com ele em 2021 e ele faleceu no ano passado. Quer dizer, se eu não tivesse entrevistado ele, as memórias dele não teriam sido registradas e ele tem muito a dizer, ele estava em um jornal falando de uma associação para gays em 1985”. 

Como forma de ultrapassar os muros da UFMT, Marcos decidiu transformar a dissertação em uma série de vídeos que estão sendo publicados no Instagram, adaptando o texto da pesquisa acadêmica para uma linguagem mais informal. O jornalista também tem planos de transformar o trabalho em um livro e um documentário. 

“Comecei a pensar em atingir a minha bolha para que ela também espalhe essa mensagem para outras pessoas a partir de uma linguagem que todos entendam. Fui bolsista Capes e foi fundamental para conseguir terminar a pesquisa, então fazer esses vídeos também é uma forma de devolver esse incentivo público que eu recebi”.
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