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Quinta-feira, 28 de março de 2024

Notícias | Artes Cênicas

Nova produção da Cia. Razões Inversas analisa formas de violência social

O mal tornou-se prosaico. Doença corriqueira que atravessa os dias, estampa os jornais recoberta por certa indiferença, por uma estranha sensação de normalidade. Em Anatomia Woyzeck, espetáculo que entra em cartaz hoje, a Cia. Razões Inversas e o diretor Marcio Aurélio investigam formas da violência. Mas lançam para o tema um olhar que ultrapassa as recorrentes discussões sobre formas mais eficazes de punição - como o atual debate sobre a maioridade penal. Tampouco se detêm sobre as explicações sociológicas para sua origem. "Não tem moralismo. Não estamos dizendo essa é a saída, essa é a alternativa. Mas é inacreditável que depois de todo o desenvolvimento social, cultural e científico, o homem ainda mate, ainda se vingue. Quais são os sentimentos que nos levam a tomar determinadas atitudes?", questiona o encenador.

Versão da obra clássica de Georg Büchner (1813-1837), Woyzeck entra no repertório do grupo como parte final de uma "trilogia da violência": percurso iniciado com Agreste (2004) e Anatomia Frozen (2009). Em ambos eram recorrentes os casos de crueldade, barbárie e intolerância. Só que se estava lidando com dois textos contemporâneos. Woyzeck, ao contrário, flagra uma outra época. Foi levado ao palco pela primeira vez há exatamente um século, em 1913. "São obras de tempos muito diferentes, mas que mostram, ao longo da história, como se mantém a ignorância, a intolerância, o extermínio. Em tantos anos não se alteraram muito os costumes do cidadão, a nossa maneira de lidar com as coisas", argumenta Marcio Aurélio.

Woyzeck conta a história de um homem pobre, que se submete a um experimento científico para conseguir mais dinheiro para sustentar a mulher, mas acaba matando-a a facadas. Escrita por Büchner no ano de sua morte, em 1837, a peça ficou inacabada. Dela restaram apenas fragmentos. Ainda assim tornou-se uma das criações mais populares da dramaturgia alemã. Já mereceu incontáveis versões para o teatro, virou filme dirigido por Werner Herzog e transformou-se em ópera nas mãos de Alban Berg.

Difícil precisar se tamanha popularidade deve-se à força de sua temática ou à sua qualidade literária, com cenas sempre curtas e contundentes. Pode-se, porém, afirmar que o texto capta um precioso momento histórico, instante em que a violência era ainda episódica. Mas já dava sinais de seu potencial sistêmico. "A peça capta o período entre a Revolução Francesa e a 1ª Guerra Mundial, situação de transformações brutais, que afetaram drasticamente as estruturas sociais, a maneira de as pessoas se relacionarem", diz o diretor.

É a dissolução da identidade individual o mote que anima a obra do escritor alemão. O crime - aquele perpetrado por Franz Woyzeck contra sua mulher - representa apenas o final de uma linha de muitas outras violências invisíveis. Um caminho que tem origem na condição social do protagonista. "É a pobreza que pauta as relações que ele tem com as pessoas", acredita o diretor.

Muitas encenações, aliás, valeram-se desse dado para dar à criação um viés naturalista. A opção da cia. Razões Inversas, contudo, segue em direção oposta. Seguindo mais uma vez os ensinamentos de Bertolt Brecht - que sempre se manifestaram na trajetória do grupo -, Marcio Aurélio envereda por uma montagem épica. Dispensa efeitos cênicos. Também não delineia um drama com o qual o espectador possa se identificar. Todo o seu trabalho está centrado em três intérpretes - Paulo Marcello, Washington Luiz e Clóvis Gonçalves -, que se revezam para dar voz a todos os personagens. "O épico me propõe um jogo de embate social. Abre a questão que está sendo apresentada, que não é apenas de um indivíduo, mas de uma sociedade inteira", define.
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