Leia abaixo o texto de escritor Marinaldo Custódio sobre o mais recente trabalho da cantora Ana Cañas. Universo feminino, "inovações linguísticas" e provocações da artista são analisadas pelo cronista autor dos livros "Viagens Inventadas" e "Vestida de Preto e Outras Crônicas", ambos publicados pela editora Entrelinhas.
Ana Cañas, amores urbanos e Todxs
Marinaldo Custódio
Há alguns dias, pensando em algo relacionado ao Dia Internacional da Mulher, me ocorreu a ideia de escrever um texto a partir do álbum “Todxs”, lançado recentemente pela cantora e compositora paulistana Ana Cañas, uma coprodução dela e do também guitarrista de sua banda Tiago Barromeu. Neste seu sexto álbum, algumas novidades: primeira: foi lançado de forma independente pelo seu próprio selo, o Guela Records, e outra: trata-se de um lançamento restrito a serviços de streaming, de modo que os velhos aficionados do objeto disco (LPs, CDs) ficamos impedidos, pelo menos por enquanto, de adquirir a versão física de tão sugestivo e sedutor produto. Por enquanto, reitere-se, porque de repente a artista e seus produtores podem reconsiderar a opção e romper a exclusividade, neste caso, da plataforma digital.
Por outro lado, desde que ouvi, e li, pela primeira vez a palavra ‘todxs’ (usada por quem não quer dizer ‘todos’ nem ‘todas’), interpretei-a mais como uma brincadeira ou uma provocação do que algo para efetivamente ser levado a sério. Afinal, sou um praticante da norma culta da língua e acho que em qualquer situação é bem melhor mesmo escrever do jeito que aprendi na escola.
Assim, o que me chama a atenção, pra valer, no álbum, é o seu caráter provocador. E, pelo visto, tanto para mim quanto para os jornalistas e críticos musicais em geral, pois o que mais eles e elas têm destacado em Ana é justamente a capacidade de ser ao mesmo tempo inovadora e repetitiva em relação a si mesma. Por um lado é inovadora sim, vem para quebrar tudo em termos de posicionamento, de assumir ideias e conceitos, atitudes, enfim, e assim vem sendo saudada: provocante, anárquica, sexual, a que faz a boa afronta, ativista, feminista etc. A capa, cara do disco, já mostra logo a
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que ela e seu produto vieram: no meio das pernas de uma mulher, seu sexo é uma serpente, boca desafiadoramente aberta, língua afiada pronta para dar o bote. Nesse sentido, a própria artista cutuca, destacando seu propósito, quando utiliza suas páginas sociais para comentar a declarada intenção de refletir sobre um tema que ainda é considerado tabu por muitas pessoas: o prazer sexual feminino. Assim, de modo complementar, em depoimento à imprensa, ela declarou: “É um disco que tem uma sensualidade, claro, e tem mais do que isso. Acho que é uma grande afronta à cultura patriarcal de que mulher não pode falar de sexo, que mulher não goza. É importante quebrar alguns tabus porque eu estou de saco cheio deles e sei que muita gente também está”, diz a cantora.
Em contexto parecido, ela voltou a falar da capa e da imagem que a ilustra: “a capa está relacionada ao conteúdo das letras que defendem o feminismo, LGBTQI+, liberdade de gênero, amor, sexo, legalização da maconha, entre outros”.
Vejamos, então, um trecho de “Lambe-lambe”, uma das faixas de sua autoria (aliás, a maioria absoluta no álbum):
“Não se apavore com uma mulher que goza / nós é assim mina maravilhosa”.
Por outro lado, como destaquei no início do texto, não há maiores novidades quanto às
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‘harmonias’, por assim dizer, de seu novo álbum. Na musicalidade, conforme afirmou um crítico de jornal, ali predominam o blues e o soul marcados pelo beat eletrônico. O que, de fato, já vem desde seu bom disco de estreia, o CD “Amor e Caos” (Sony Music, 2007). E também quanto ao repertório. E assim também na mistura que faz em seu diálogo permanente com artistas relevantes de nosso tempo: em “Amor e Caos” ela revisitou Caetano Veloso (Coração vagabundo) e Bob Dylan (Rainy Day Women #12&35) enquanto em “Todxs” é sua vez de revisitar Itamar Assumpção em “Tua boca” (que conta com participação especial nos vocais de Chico Chico, filho de Cássia Eller), além de Cassiano e Silvio Rochael em “Eu amo você”, hit na voz de Tim Maia da década de 70 (na versão atual de Ana, o clipe da canção mostra a cantora vivendo um romance lésbico com a atriz Nanda Costa).
No mais, além das citadas, “Todxs” brinda seus ouvintes-espectadores com outras canções significativas, a exemplo da faixa de abertura “Declaro my love”, composta em parceria com Arnaldo Antunes, e da faixa-título em que ela faz dueto com o rapper Sombra, com clipe na linha do “toda forma de amor valerá” de Milton e Caetano.
Em síntese, é isto: posicionamento. Disposição para ir ao ataque, escancarar-se, afrontar, assumir riscos e responsabilidades.
De todo modo, o que não se pode negar é que ela sabe falar, e muito bem, de mulheres. “Já fui mulher, eu sei”, como disse um dia Chico César. Ou como a própria dissera na confessional “A Ana”, também de seu disco de estreia: “A Ana disse ontem / a Ana ficou triste / A Ana também leu / A Ana não existe. / É, a Ana insiste / A Ana não consegue / A Ana inventou / Ela também merece”.
É. De fato, essa Ana (Cañas) não existe. E também merece.
MARINALDO CUSTÓDIO, escritor, publicou Viagens inventadas: crônicas e quase contos (2010) e Vestida de preto & outras crônicas (2018), ambos pela editora Entrelinhas.
E-mail: mcmarinaldo@hotmail.com