Transe em terra acreana: uma viagem de Ayahuasca e pela gastronomia nos limites do Brasil; veja vídeos
Pelos Brasis
Olá, viajantes! Chegamos ao Acre. Mas quase não viemos. Vivemos em uma Kombi como vocês sabem e postos de gasolina são nosso abrigo mais comum. Caminhoneiros são amigos que fazemos o tempo todo e de onde tiramos as melhores dicas de caminhos a seguir. Muitos deles nos alertaram para evitar esse estado pelo risco imposto pelas facções criminosas, as más condições das rodovias e "poucos" atrativos turísticos. Felizmente, desta vez, seguimos nossa intuição, encaramos a entrada no Acre e pudemos descobrir novos sabores e embarcamos em uma viagem lisérgica, conduzida por povos indígenas no coração da floresta amazônica. Calma, já chegaremos lá.
Grupos criminosos tem em tudo quanto é lugar do país, então por que todos esses alertas sobre o risco que correríamos no Acre? Bom, estamos falando de um estado que faz fronteira com Peru e Bolívia, na região amazônica, o que o torna um corredor de entrada de drogas no Brasil. Há também uma severa briga de facções no estado e há constantes roubos de cargas valiosas: daí o motivo dos caminhoneiros no alertarem para evitar aqui. E também está aí um motivo de termos decidido entrar: ao contrário dos nossos amigos, não transportamos carga alguma e nossa Kombi é longe de ser um carro visado. De qualquer forma, ao chegarmos em Rio Branco, a capital do Estado, ficamos em um posto que cobra pelo pernoite, mas garante segurança. Esta foi a primeira vez que pagamos por isso. Cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém, já diria minha avó.
Ficamos encantados com Rio Branco. Uma capital linda, com charme de cidade pequena, cortada pelo Rio Acre. A influência indígena se faz presente na gastronomia e artesanato. As comidas de rua são uma atração à parte. Aqui o tacacá tão famoso no Pará e presente também em Rondônia é facilmente encontrado, com o tucupi, caldo de mandioca fervido e fermentado (base do tacacá), presente em diversos outros pratos. O açaí que estamos acostumados a encontrar em outros lugares do país aqui é o açaí cremoso, porque também se encontra com facilidade a poupa da fruta in natura, sem açúcar e outros aditivos.
Fizemos um vídeo somente sobre comidas de rua. Confira aqui:
Além da comida de rua, provamos pratos autorais em restaurantes de Rio Branco. Um dele é a moqueca acreana, cujo diferencial é a adição de banana da terra. O acreano, aliás, adora banana da terra, assim como o cuiabano. Outro prato incrível foi o carpaccio de pirarucu: uma mistura de técnica gastronômica de fora com produtos locais, o tão saboroso peixe amazônico. Esta aí outra semelhança com o cuiabano, o acreano adora uma peixada de rio - assim como o rondoniense. Outra paixão comum: o tereré.
Rio Branco tem museus que ajudam a contar a história do Acre. Ouvindo o nome desse estado, o pensamento mais óbvio que talvez lhe venha à cabeça seja perguntar se ele existe mesmo. Os próprios acreanos brincam com essa piada e vendem imãs de geladeira e camisetas com esse tema, mas o fato é que o Acre existe e lutou muito para isso. O território já pertenceu à Bolívia, conquistou uma breve independência e se tornou um país, depois voltou ao domínio boliviano e foi trocado com o Brasil pela construção da ferrovia Madeira Mamoré.
Passado para o Brasil, foi considerado território federal, sem a autonomia política dos estados. Vale lembrar que durante os dois ciclos da borracha, o Acre foi responsável por até um terço de todo o PIB do Brasil, com a exploração dos seringais. Durante esse período, toda a riqueza extraída da floresta era levada pelo Governo Federal e não era investida aqui.
Só dá para imaginar o que o Acre poderia ter sido se não tivesse somente seus recursos drenados por anos pelo Governo Federal. Foi com muita luta política, encabeçada pelos Autonomistas, que o a Acre finalmente se tornou um estado, em 1962, quando o negócio da borracha já havia entrado em derrocada. E foi após esse ciclo que o estado começou a incentivar a atividade pecuária, que para ser exercida precisa da derrubada de árvores, o que fez nascer a causa dos seringueiros e ambientalistas no Acre, cujo maior expoente foi Chico Mendes, morto em 1998. Todas essas histórias podem ser conhecidas de forma mais detalhada em Rio Branco, no Palácio Rio Branco, Museu dos Autonomistas e Museu da Borracha.
Explicamos no vídeo abaixo o que provocou o fim do ciclo da borracha:
Já tínhamos decidido ir para Xapuri, cidade natal de Chico Mendes, onde é possível visitar a casa do líder seringueiro e ambientalista quando descobrimos que a casa estava fechada. Ainda em Rio Branco também soubemos do povo Shanenawa, uma etnia indígena localizada no município de Feijó, poderia nos receber para passarmos uns dias lá. Fizemos contato e mudamos a rota. Seguimos para Feijó.
Chegando lá, tivemos de atravessar um rio para chegar à terra demarcada dos Shanenawa. O cacique Tekahayne nos contou a história de luta do seu povo para manter sua identidade. Eles tiveram contato com não indígenas ainda no ciclo da borracha. Foram escravizados nos seringais, tiveram suas mulheres raptadas e o idioma proibido. Há anos, começaram um trabalho de fortalecimento interno e de recuperação de suas tradições.
Lá conversamos sobre crenças, passado e futuro. Conhecemos o suco de banana da terra, comemos peixe assado e carne de veado na brasa. O animal é caçado na terra indígena. Participamos de um evento de intercâmbio de diferentes escolas dos Shanenawa, com danças e brincadeiras, tudo como parte do processo de fortalecimento desse povo.
Elemento central dessa retomada das tradições são as medicinas da floresta, como Uni, Sananga e Rapé. A Sananga é uma espécie de colírio, feito com elementos da floresta, que provoca forte ardência e, segundo a tradição Shanenawa, cura doenças de vista e melhora a visão. O rapé é cinza de tabaco misturado com cinzas de outras plantas medicinais. A aplicação dele é feita nas narinas, com sopros que imitam ações de animais. Ele provoca relaxamento, em alguns casos tontura e até enjoo.
O outro elemento, o Uni que em outros locais também recebe o nome de Daime ou Ayahuasca, é um chá alucinógeno feito a base de folhas e cipós da Amazônia. É de domínio de várias etnias indígenas da região e também foram apropriados/ absorvidos e/ou inspiraram a criação de religiões e terapias não ligadas diretamente a povos indígenas.
Tekahayne explicou que são por meio dessas medicinas que os Shanenawa se conectam com ancestrais e estudam soluções para os problemas que se apresentam. As reações provocadas no corpo humano são classificadas por eles como mirações, momentos em que saídas e respostas aparecem, como epifanias.
Nos Shanenawa, o uso de Uni, Sananga e Rapé é feito com propósito de cura e para a busca de respostas. Não indígenas os procuram para tratamentos de saúde, como dependência química, por exemplo. Fizemos o uso das medicinas da floresta em uma noite estrelada, sob a condução dos Shanenawa, com cânticos que transformam a viagem lisérgica em uma experiência multissensorial telúrica, um trânse em simbiose com a terra, a floresta e os elementos da natureza. Contamos detalhadamente nossas experiências no vídeo abaixo e no nosso podcast (confira aqui).
Feijó fica no caminho entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul, extremo oeste do Brasil, quase chegando no Peru. A estrada é rota de viajantes que querem ir para o país vizinho e a tentação de dar um pulo lá não foi pequena. O problema é que as condições da rodovia estavam muito piores naquele sentido, a ponto de colocar em risco nossa caixa d'água, que fica sob a kombi. Como queremos andar "Pelos Brasis", descartamos a ida ao Peru e demos meia volta. Cruzeiro do Sul, até um dia, quem sabe... temos um perrengue de estrada pela frente, mas isso fica pra próxima coluna.
A coluna Pelos Brasis é assinada pelos jornalistas Lucas Bólico e Isabela Mercuri. Acompanhe o projeto no Instagram, TikTok, Youtube e Spotfy
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