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Quinta-feira, 28 de março de 2024

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Defensoria do Povo, uma proposta esquecida.


A nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869, de 5 de setembro de 2019), que é proveniente de várias iniciativas, entrará em vigor logo nos próximos meses, em meio à polêmica discussão sobre os seus dispositivos e decorrentes reflexos.

Depois de remetido à Presidência da República para sanção, o Projeto sofreu 36 vetos de Bolsonaro, dos quais 18 foram derrubados no Congresso. A Lei prevê condutas que podem ser consideradas abuso de autoridade, com penas que variam entre seis meses e quatro anos de prisão. Segundo o texto, essas condutas somente serão crime se praticadas com o dolo específico (finalidade específica) de prejudicar outra pessoa ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, assim como por mero capricho ou satisfação pessoal (art. 1º, §1º, da Lei).

Os noticiários dão conta de que, pelo menos, somam-se agora quatro ações contra a Lei no Supremo, propostas por entidades representativas do Ministério Público, da Magistratura e do Fisco, em geral calcadas na premissa de que a aprovação do Diploma Legal representaria “(...) um ataque às instituições democráticas e retaliação ao trabalho de combate à corrupção realizado pela polícia, Ministério Público e Poder Judiciário”, principalmente frente ao avanço da Operação Lava Jato.

A polêmica e celeuma em torno da tramitação do projeto e aprovação da Lei 13.869, de 5 de setembro de 2019, trazem à lume, ante ao desvão dos argumentos que pugnam pela inaplicabilidade ou desnecessidade da Lei de Abuso de Autoridade, a sombra de uma proposta esquecida, que pretendo abordar (a partir de estudos e alguns artigos sobre o tema) no presente artigo, ao Olhar Jurídico.

Tratarei – ainda que em termos mais ou menos breves, dada a complexidade da matéria – da Defensoria do Povo, uma proposta de concepção emancipadora, de uma instituição de direito público que hoje me aparece como vital à salvaguarda do equilíbrio entre os poderes do Estado e à democracia, que cuidaria não só de ampliar o conceito de cidadania e de proteção dos direitos fundamentais, mas também de amparar interesses essenciais da vida comunitária, controlando e denunciando o eventual exercício abusivo do poder pelas autoridades constituídas, de qualquer esfera, do menor ao mais alto escalão do Estado.

Às expensas de minhas seguintes considerações, a própria conceituação do sujeito de minhas próximas palavras se mescla ao contexto histórico da dinâmica das discussões, no Brasil, que trouxeram à cena a mossa do Defensor do Povo, um verdadeiro ombudsman brasileiro, que acabou por nunca, até hoje, pelo menos em suas feições originais, sair do papel, deixando certas cancelas abertas e afastando da proximidade do povo o controle e o combate ao abuso de autoridade, que infelizmente é traço marcante e presente na história do Brasil, desde a colonização. É, como dizem, sempre bom lembrar da história.

Pois bem. No início dos anos oitenta, com o prenúncio de uma abertura democrática no país, algumas poucas vozes isoladas, com pouca ressonância frente ao sistema em que estavam inseridas, levantaram-se em ambas as casas do Congresso Nacional, pedindo a instituição da Defensoria do Povo no Brasil.

A proposta já houvera sido defendida antes, nos idos de 1967, em escritos do ilustrado Professor Caio Tácito, quando da publicação de artigo – O controle da administração e a nova Constituição do Brasil – por intermédio do qual apresentou o Defensor do Povo como um “ombudsman” brasileiro, o que seria uma espécie de “(...) comissário parlamentar, escolhido pelo Poder Legislativo, com atribuições especiais de acompanhar e fiscalizar a regularidade da administração civil ou militar, apreciando queixas que lhe sejam encaminhadas ou realizando inspeções espontâneas nos serviços públicos.”

No primeiro mear da década de oitenta, aos menos quatro propostas oriundas do Congresso Nacional foram avivadas no debate democrático, contendo a necessidade de instituição da figura do Defensor do Povo.

Três dessas propostas foram apresentadas pela Câmara dos Deputados, entre 1981 e 84, todas voltadas à criação de uma espécie de “procuradoria popular”, mais ou menos vinculada ao Poder Legislativo, com a função de receber e apurar queixas ou denúncias de cidadãos prejudicados por atos da Administração e investigar as violações às leis e aos direitos fundamentais do cidadão. A outra proposta foi apresentada pelo Senado, em 1983, como uma pretensa linha de solução à corrupção desenfreada, que assolava os poderes da República. Nenhuma das propostas de criação da Defensoria do Povo obteve muita reverberação, e os esperançosos intentos tiveram como destino incontornável o arquivo.

A Defensoria do Povo só voltaria ao plano de debate em 1986, período a partir do qual viveu seu mais intenso e auspicioso regalo, só encerrado dois anos depois, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que optou – infelizmente, me parece – por não implantar, como concebido originalmente, este importante sistema de controle e de defesa contra os abusos de autoridade, barrado de existir efetiva e verdadeiramente ainda nos filtros da ‘Assembleia’ Nacional Constituinte.

À proposta do modo em que concebida em 1986, no seio da Comissão Afonso Arinos (Comissão Provisória de Estudos Constitucionais), batizada pela imprensa, à época, como comissão de(os) notáveis, gestou-se o projeto de instituição de um Defensor do Povo, que seria nomeado pela Câmara dos Deputados, com poderes de proteção das pessoas prejudicadas por ações/omissões abusivas de autoridades. O signatário da proposta de inclusão na minuta de Constituição Federal, foi o pensador católico Cândido Antônio Mendes de Almeida, um dos membros daquela Comissão, que no auge da tortura praticada nos calabouços do AI-5 (Ditadura Militar), atuou salvando a vida de presos e perseguidos políticos.

Cândido Antônio Mendes de Almeida, que era um progressista e ferrenho entusiasta do figurino constitucional do Defensor do Povo, tinha consciência da importância da proposta, afinal conhecera como poucos o horror a que o poder mal administrado pode dar causa, desde suas pequenas manifestações até seus maiores desvios.

No Anteprojeto da Constituição de 1986, que a comissão presidida por Afonso Arinos apresentou, vê-se ainda o art. 56, que remata: “É criado o Defensor do Povo, incumbido, na forma de lei complementar, de zelar pelo efetivo respeito dos poderes do Estado aos direitos assegurados nesta Constituição, apurando abusos e omissões de qualquer autoridade e indicando aos órgãos competentes as medidas necessárias à sua correção ou punição.” Como se vê do dispositivo e dos termos da proposta apresentada pela comissão presidida por Afonso Arinos, o Defensor do Povo poderia promover a responsabilidade da autoridade pública requisitada no caso de omissão abusiva na adoção das providências requeridas.

A proposta como apresentada, ainda previa que, à investidura, seria o Defensor escolhido, em eleição secreta, pela maioria absoluta dos membros da Câmara dos Deputados, entre candidatos brasileiros natos, indicados pela sociedade civil e de notório respeito público e reputação ilibada, para um mandato não renovável de cinco anos. Teria, ademais, a inviolabilidade, os impedimentos, as prerrogativas processuais dos membros do Congresso Nacional, com vencimentos equivalentes aos Ministros do Supremo, sendo que as Constituições Estaduais, no âmbito dos Estados da Federação, também poderiam fazer a previsão de instituição, junto às respectivas Assembleias Legislativas, de tal figura.

Assim, propunha-se o ombudsman brasileiro, em referência ao termo para “ouvidor do povo”, que viu seu berço na Constituição sueca de 1809. Uma figura autônoma ligada – mas não subordinada – ao Legislativo, com força representativa e dotada de garantias – tudo a ser disciplinado mediante Lei Complementar – de independência (e autonomia), que lhe permitiriam denunciar os abusos, principalmente por omissão, das autoridades do Estado. Tinha-se, como proposta, uma figura transitória saída do povo, ligada ao povo (indicada pela sociedade civil), à medida em que investida via eleição por seus representantes.

Muito embora auspiciosa e importante, a proposta de Defensoria do Povo da comissão de notáveis também fracassou e padeceu. Havia interesses ilustres e coesos em questão. O Procurador Geral da República (PGR) de então, e hoje ex-Ministro do Supremo, José Paulo Sepúlveda Pertence, que àquela altura integrava, como um notável, a Comissão Afonso Arinos, conseguiu interceder politicamente junto aos trabalhos da Constituinte através de bloco de grande pressão formado, à época, pelos membros do Ministério Público brasileiro. Dentre outras várias reinvindicações à Assembleia Nacional colacionadas na famosa Carta de Curitiba, os signatários da missiva advogaram a absorção, pelo Ministério Público, das atribuições de ombudsman (Defensor do Povo) – sugerida pelo Anteprojeto Afonso Arinos.

Várias críticas e esforços foram empregados no intuito de ver recuperada a figura do Defensor do Povo como proposta originalmente, inclusive esforços do próprio Candido Mendes, que era contrário à absorção por considerar necessário que o escrutínio do uso da autoridade – eventuais ações/omissões abusivas – fosse feito por um representante variável do povo, de fora do sistema interno do poder; nenhum dos esforços contra a absorção, contudo, frutificou, de modo que o projeto, já no segundo substitutivo do relator Bernardo Cabral, viu ser abandonada a Defensoria do Povo, sendo agregada, então, às funções institucionais do Ministério Público, sob a rubrica atributiva de “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços sociais de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, apurando abusos e omissões de qualquer autoridade e promovendo as medidas necessárias à sua correção e punição dos responsáveis” (CRFB/88, art. 129, inc. II).

A última vez, em nossa história recente, que a Defensoria do Povo veio à lume nas discussões, foi em 1993. A vontade de ver nascer a atuar a figura da Defensoria do Povo, no Brasil, veio à tona por ocasião da Revisão Constitucional daquele ano. O Partido Democrático Trabalhista (PDT), por uma Emenda Aditiva, propôs a inclusão, no Título II da Constituição (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), em caráter definitivo, da Defensoria do Povo. A proposta, como bem se verifica do atual texto constitucional, não vicejou, e ainda hoje jaz esquecida.

Face às discussões recentes de amplo espectro no país envolvendo e apontando quadros de abuso de autoridade e diante do novel Diploma Legal (re)definindo as condutas consideradas como abusivas, a ausência dos contornos e do figurino original da Defensoria do Povo instiga que se volte a pensar e, quer até, eventualmente, propor no Brasil a adoção – renovado em nossa realidade e de acordo com a nossa realidade, principalmente constitucional – deste instituto, mormente quando a Defensoria do Povo foi adotada em praticamente todos os países à nossa volta (ex. Paraguai, El Salvador, Peru, Argentina, México, Bolívia, etc.).

A Defensoria do Povo, adequada à realidade moderna que nos envolve e possivelmente ligada ao poder Legislativo (Federal e Estadual), quiçá com a possibilidade de revezamento em mandatos, indicada pela sociedade civil, com garantias de independência, além de prerrogativas próprias de fiscalização e autonomia, seria um importante instrumento, no Brasil, de efetivação da democracia e do Estado de Direito, que, aliada ao valoroso e arrojado trabalho já desempenhado pelo Ministério Público e demais órgãos de controle, fortaleceria o combate ao abuso de autoridade, denunciando à nação (Federação/Estados) as omissões e ações descompromissadas de autoridades do Estado que se utilizam do poder em benefício próprio e para prejudicar terceiros, calcando-se como uma ferramenta progressista, republicana e útil de controle à disposição do povo contra a abusiva/arbitrária/descompromissada utilização do poder.

Mais ou menos na esteira do que diz MANGABEIRA UNGER, em Depois do Colonialismo Mental: para construir-se, primeiro uma ideia precisa ser proposta. Como se vê, a ideia da Defensoria do Povo irrompeu-se como realidade do possível variadas vezes em nossa história constitucional recente, de modo que não soa absurdo que volte aos debates, principalmente agora com a nova Lei de Abuso de Autoridade, que tem sim um importante papel a cumprir no país.

Nenhuma ideia nasce pronta e acabada, principalmente as boas. As ideias dominantes no Brasil sobre o abuso de autoridade hoje mais dissimulam do que revelam, mais mistificam do que propõe. A nova Lei de Abuso de Autoridade não nasceu perfeita, certamente merecerá aprimoramentos, mas é uma passo largo à medida em que coloca em discussão, em debate, aspectos sensíveis do comportamento autoritário, omissivo ou comissivo, do Estado que remontam ao sistema colonial do Brasil, e que entorpecem a visão de alguns sobre o significado do princípio da igualdade, deixando vingar impune a ilusão estrábica de que nem todos estão/são sujeitos ao império da lei, e responsabilidades consequentes.

À guisa de conclusão, como disse o penalista Guilherme NUCCI, em recente artigo (A nova Lei de Abuso de Autoridade) publicado em site jurídico, “pode-se argumentar que a nova Lei de Abuso de Autoridade foi editada em época equivocada, pois pareceu uma resposta vingativa do Parlamento contra a operação Lava Jato”, mas ninguém duvida de sua necessidade e de instituições e ferramentas cada vez mais fortes e operantes no combate a este mal que se faz presente desde os primórdios da colonização do Brasil. Daí, tem-se que a Defensoria do Povo, democrática e republicana na essência, poderia ser resgatada e (re)pensada como uma importante inovação do Legislativo contra o autoritarismo em terras tupiniquins.
 

Pablo Pizzatto Advogado ​Sócio-Fundador do Escritório Curvo e Pizzatto 

 
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