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A (in)disponibilidade do prontuário em caso de falecimento do paciente face a natureza sigilosa do documento

Djenane Nodari

A Lei 3.268, de 30 de setembro de 1957, prevê que a competência para legislar matéria relativa a atividade da medicina é atribuída ao Conselho Federal de Medicina (CFM) e aos Conselhos Regionais de Medicina (CRM), conforme dispõe o art. 2º , “ O conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina são os órgãos supervisores da ética profissional em toda a República e ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina, e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente.”

Por força da lei, o CFM, publicou a Resolução nº 1.638/2002, regulamentando o prontuário, descrevendo o conceito, os requisitos mínimos, o dever de sigilo, de responsabilidade dos profissionais e das instituições de saúde e ainda a obrigatoriedade de instituir as Comissões de Revisão nas instituições de saúde.

Do art. 1º, se extrai o conceito, vejamos: “Definir prontuário médico como o documento único constituído de um conjunto de informações, sinais e imagens registradas, geradas a partir de fatos, acontecimentos e situações sobre a saúde do paciente e a assistência a ele prestada, de caráter legal, sigiloso e científico, que possibilita a comunicação entre membros da equipe multiprofissional e a continuidade da assistência prestada ao indivíduo.”

De natureza tríplice, o prontuário tem caráter legal, científico e sigiloso.  O primeiro se dá pelo fato de que o documento poderá ser usado como prova em processos disciplinares e judiciais, com o objetivo de identificar as ações ou omissões do médico, da equipe multiprofissional bem como a existência ou inexistência de responsabilidade da instituição de saúde onde o atendimento ocorreu.

O segundo, se observa na condição de que os registros acerca da saúde do paciente podem ser utilizados no estudo e discussão de outros casos, na pesquisa pela comunidade médica e por instituições de ensino visando o aperfeiçoamento da prática médica e da pesquisa clínica sendo que o compartilhamento somente pode ocorrer em relação a patologia, os protocolos adotados no tratamento, a evolução bem como o desfecho, é vedado ao médico e as instituições compartilharem os dados dos pacientes.

Já o terceiro tem previsão no art. 73, da Resolução nº 2.217/2018, (Código de Ética Médica), sendo vedado ao médico “Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente” o sigilo se estende após a morte conforme o Parágrafo único “Permanece essa proibição: a) mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha (nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento); c) na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal.” Já o art. 85, do mesmo diploma diz que é vedado ao médico “Permitir o manuseio e o conhecimento dos prontuários por pessoas não obrigadas ao sigilo profissional quando sob sua responsabilidade”.

O prontuário é um conjunto de documentos de extrema relevância na relação médico-paciente e obrigatoriamente, deve conter a identificação do paciente; anamnese; exame físico; exames complementares e resultados; hipóteses diagnósticas e diagnóstico definitivo; conduta terapêutica; evolução diária, com data e hora, procedimentos realizados e identificação dos profissionais que realizaram; descrições cirúrgicas; fichas de anestesia; prescrições médicas e de outros profissionais de saúde; resumo de alta e ou declaração de óbito; fichas de atendimento ambulatorial e ou de atendimento de urgência; registros de consentimentos esclarecidos.

 Deve ser elaborado de forma detalhada, com letras legíveis para que o paciente possa compreender considerando ainda a situação socioeconômica do paciente e deve conter a assinatura dos profissionais envolvidos, o carimbo, o nome e o nº de registro do médico junto ao CRM do local que é vinculado.

O prontuário não é apenas o registro de anamnese do paciente, mas todo o acervo documental padronizado, organizado e conciso, referente aos cuidados médicos prestados, assim como os documentos pertinentes a essa assistência abrangendo desde  exames clínicos do paciente, fichas de ocorrências e de prescrição terapêutica, relatórios de enfermagem, da anestesia e da cirurgia, ficha do registro dos resultados de exames complementares e cópia de solicitação e resultado de exames complementares, sendo que as informações contidas no prontuário ou na ficha médica, não podem ser revelados.

Muito embora o prontuário tenha caráter sigiloso, sendo um dever inerente ao desempenho da profissão médica, é um documento que pertence ao paciente sob a guarda do médico de acordo com o art. 87, § 2º, do Código de Ética Médica que descreve que “O prontuário estará sob a guarda do médico ou da instituição que assiste o paciente” sendo que o prazo de guarda é de 20 anos, contados do último registro. Por ser documento do paciente, o mesmo tem direito a obtenção de cópias conforme o art. 88, do mesmo diploma, sendo vedado ao médico “Negar ao paciente, acesso a seu prontuário, deixar de lhe fornecer cópia quando solicitada, bem como deixar de lhe dar explicações necessárias à sua compreensão, salvo quando ocasionarem riscos ao próprio paciente ou a terceiros”.

Por outro lado, a discussão sobre o direito de acesso e recebimento de cópia do prontuário médico por terceiro, em caso de paciente falecido tem se tornado recorrente e o CFM e juntamente aos Conselhos Regionais que tem apresentado resoluções, pareceres e notas técnicas visando orientar os médicos e demais interessados. Vale relembrar que o sigilo profissional do médico é princípio fundamental com previsão no Código de Ética Médica, XI: “O médico guardará sigilo a respeito das informações de que detenha conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos previstos em lei”. O art. 89, trata da questão dispondo que é vedado ao médico “Liberar cópias do prontuário sob sua guarda, salvo quando autorizado, por escrito, pelo paciente, para atender ordem judicial ou para a sua própria defesa”, já o § 1º diz “Quando requisitado judicialmente o prontuário será disponibilizado ao perito médico nomeado pelo juiz” e o § 2º, que “Quando o prontuário for apresentado em sua própria defesa, o médico deverá solicitar que seja observado o sigilo profissional”, e quando autorizado pelo paciente, a autorização deve se dar por escrito e a entrega deve observar a correta identificação de quem está fazendo a retirada.

Muito embora não há previsão legal sobre direito de personalidade de morto, é comum o familiar do falecido requerer acesso às cópias. Neste caso, a tutela jurídica em nome próprio, por direito próprio, quando se achar lesado indiretamente e que sofreu um dano reflexo, chamado de dano em ricochete, deve ser feito em juízo e a legitimidade ordinária possibilita o requerimento e o julgador analisará os motivos do pedido decidindo favorável ou não.

Diante disso, é importante destacar as lições do art. 11, do Código Civil, que diz “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”. Nesse cenário, vale resgatar o prescrito na última parte da letra a, do Parágrafo único, do art. 73, já mencionado, já que o sigilo profissional se estende após a morte do paciente, porém, o acesso ao documento por terceiro pode ocorrer em três hipóteses em que o sigilo não se aplica sendo a primeira, justo motivo; a segunda, dever legal e a terceira, entrega mediante a autorização do próprio paciente.

O motivo justo é uma condição subjetiva e está vinculado a interesse social ou moral, ficando o médico e ou o juiz com o poder discricionário de observar o alegado motivo justo destacando que não basta alegações genéricas.  O dever legal, como o próprio termo diz, decorre da lei, nesse caso, a quebra do sigilo ocorre por obediência à previsão legal sendo que ao médico, cabe a obrigação de fazer a notificação compulsória. Outra hipótese é o consentimento, é a possibilidade de disponibilidade de cópia do prontuário uma vez que há expressa autorização do paciente para que, depois de sua da morte, o documento seja disponibilizado.  

Nos três casos, conforme descreve art. 23, do Código Penal, “Não há crime quando o agente pratica o fato: I - em estado de necessidade; II - em legítima defesa; III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”.

Sendo a autorização condição incontestável, a discussão ainda persiste nos casos em que o paciente não deixou expressa a vontade face a quem, e por que, está pleiteando o acesso ao documento. Muito embora tenha sido editada por conta de procedimento exclusivo, a Recomendação do CFM nº 3/2014, vem contribuindo para nortear casos similares tendo em vista que naquele particular, a orientação foi para que os médicos e as instituições de saúde fornecessem, quando solicitados pelo conjugue/companheiro sobrevivente do paciente morto, e sucessivamente pelos sucessores legítimos do paciente em linha reta, ou colaterais até o quarto grau, os prontuários médicos de seus entes falecido. A referida Recomendação colocou como condição para a entrega, o dever de haver prova documental do vínculo familiar observando a ordem de vocação hereditária bem como que os pacientes sejam informados da necessidade de manifestação expressa da objeção à divulgação do prontuário médico do falecido.

Muito embora o sigilo é direito do paciente e dever do médico e da instituição, com este singelo estudo foi possível concluir que o sigilo profissional não é revestido de caráter absoluto, sendo a relativização uma condição essencial tendo em vista as exceções ditadas pela força da lei. Portanto, os familiares dos falecidos que comprovarem os requisitos de grau de parentesco e justo motivo, quando não possuírem a autorização expressa com efeito após a morte, podem ter acesso às cópias do prontuário por meio de medida voluntária interposta me juízo. De outro lado, para a garantia do dever de sigilo do conteúdo dos documentos, o médico e a instituição de saúde, deve fazer a entrega do prontuário mediante advertência de que o sigilo deve ser mantido, inclusive podendo exigir a assinatura em termo de compromisso de confidencialidade.  
 
Dra. Djenane Nodari
 
Advogada – Presidente da Comissão de Direito da Saúde da Associação Brasileira de Advogados – ABA Mato Grosso.

 
 
 
 
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