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ENTREVISTA ESPECIAL

Reforma trabalhista segue modelo americano de produção: mais exploração e menos direitos, avalia juiz; veja entrevista

13 Mai 2017 - 16:03

Da Redação - Paulo Victor Fanaia Teixeira

Foto: Rogério Florentino Pereira/OD

Juiz André Molina

Juiz André Molina

Receita oriental: pegue um punhado de adolescentes, corte suas disciplinas de filosofia e sociologia e substitua-as por ensino profissionalizante. Arranque seus direitos trabalhistas, diminua seu salário e aumente seu tempo de serviço. Deixe a massa descansando por 65 anos de trabalho e perceba o aspecto triste da mão de obra explorada. Misture esta massa alienada em uma frigideixa de reforma da previdência e deixe-a fritando em óleo quente de crise financeira e de medo do desemprego, até que ele morra sem nunca se aposentar. Temos então uma perfeita receita de trabalhador chinês. Sal a gosto.

“Teremos pessoas culturalmente formadas para produzir, para trabalhar sem garantias de muitos direitos e fazendo horas extras. Nas escolas, não teremos formação de pessoas com senso crítico, mas meras matérias técnicas. Também seremos formados a trabalhar a vida inteira, já que não poderemos nos aposentar”. 

A declaração acima é do juiz do Tribunal Regional do Trabalho de Mato Grosso (TRT-MT), André Araújo Molina. Nesta terceira e última parte da entrevista concedida ao Olhar Jurídico, o magistrado analisa as consequências práticas do Projeto de Lei 6.787/2016, da "Reforma Trabalhista", quando somada às demais, que também tramitam no Congresso.

Parece forçoso dizer, mas o Brasil pode estar caminhando para uma “ditadura econômica”. “Estas alterações são resultado da pressão da atividade econômica do capitalismo dos grandes conglomerados, sob o argumento de competitividade internacional, que é basicamente reduzir direitos para aumentar margem de lucro”, explica o magistrado.

Juiz, professor e doutor em Filosofia do Direito pela PUC de São Paulo, André Araújo Molina é titular da Primeira Vara da Comarca de Tangará da Serra há 13 anos. Ele assume neste ano a presidência da Associação dos Magistrados do Trabalho de Mato Grosso (AMATRA 23ª). 

Leia mais:
Parte 1: "Ninguém entra em uma negociação para perder": juiz avalia reforma trabalhista; veja entrevista
Parte 2: Acordos previstos na reforma trabalhista prejudicarão trabalhador "na maioria dos casos", avalia juiz; veja entrevista

A Constituição permite que se reduza salários “em tempos de crise”, mas o que são “tempos de crise”? Esse argumento não parece um tanto relativo, questionável e esdrúxulo?

“Sem dúvida. Crise para quem? Crise internacional, interna? O que se considera crise?”.

Quer dizer, os processos cairão na Justiça do Trabalho e constará que a fundamentação para a perda de direito é a “crise”. Julgar se de fato há crise neste setor ou não, ou o que significa "crise" será a cerne das discussões da Justiça do Trabalho de agora em diante?

“Não necessariamente, se o sindicato negociar com a empresa e o argumento de crise for aceito e colocado no papel de negociação... [dá de ombros]. Até mesmo há precedentes do Supremo dizendo que a Justiça do Trabalho não pode anular pontualmente cláusulas em prejuízo se elas forem amplamente negociadas”.

Ou seja, existe a possibilidade de trabalhadores terem direitos diminuídos irreversivelmente, mesmo que sua categoria naquele momento não esteja passando por uma crise?

“Sem dúvida nenhuma, o momento de crise é apenas argumento para redução de salário. Para se reduzir salários tem que haver o argumento da crise financeira e tudo o mais. Agora, para outros direitos não há sequer esta necessidade. Mesmo que a empresa esteja em um momento de bonança e esteja tendo um faturamento muito alto, vejamos o caso dos bancos, que tem um faturamento alto: na negociação coletiva deles é permitido reduzir direitos dos bancários, dando benefícios alternativos? É. A crise é requisito neste caso? Não, crise só é requisito para reduzir salário, para reduzir outros direitos não é preciso crise nenhuma, basta mera negociação com a concessão de benefícios alternativos”.

Então eles chegarão ao limite do absurdo, tentarão diminuir salários até onde o empregador entender que é justo?

“Para fins de salário, a trava constitucional fala de até 25%, respeitando o salário mínimo. Para se reduzir salários em momentos de crise, no máximo 25%. Para reduzir outros direitos, não há patamar mínimo”.

Havemos de convir que com o imposto de renda hoje, que atinge a maioria da população e que ele é de cerca de 27%, esse corte de 25% fará com que o trabalhador receba, no fim das contas, meio salário:

“Sim”.

Isso é socialmente perigoso...

“...o grande argumento que há para se permitir esta negociação é o seguinte: ‘estou em momento de crise e preciso reduzir custos. Fulano, eu vou te mandar embora ou você topa ficar seis meses ganhando 25% a menos, com redução proporcional de carga horária, pois tenho menos encomendas em tempos de crise, e você continua com seu emprego?’”.

É difícil crer em coincidências, mas existe um movimento de mudança das regras do ensino médio, no sentido da supervalorização do ensino profissionalizante. Ou seja, o governo busca formas de estabelecer o técnico como sujeito supervalorizado, não financeiramente, mas socialmente. Isto, somado à reforma trabalhista, parece óbvio que não irá compensar fazer faculdade para determinados setores da economia do país. Teremos pessoas bem qualificadas e desempregadas ou tendo que, como já se fala em alguns artigos, esconder do currículo certas formações, sob pena de não ser contratado por ser "apto demais" e, teoricamente, ter direito à um salário melhor. Sabe-se também que as grandes empresas, as indústrias, precisam muito mais de mão de obra mediana, braçal, do que de empregados qualificados, com mestrado, doutorado, etc. O senhor acredita que a reforma trabalhista e do ensino médio, somadas, atingem sensivelmente a questão do esforço do trabalhador em se especializar, em benefício das grandes empresas? É um lobby para a proletarização do país ou é coincidência?

“Coincidência não é, é um modelo cultural. O modelo que está sendo implantado no Brasil, introjetado na cabeça das pessoas, o da produtividade. A gente vê em outros países a hora do almoço como algo sagrado. Na França, por exemplo, o intervalo de almoço não é menor que duas horas, pois culturalmente a pessoa almoça, toma um vinho no almoço, deita e descansa, e a legislação toda é pensada para atender este aspecto. No Brasil o aspecto cultural que tem sido introjetado é o modelo americano de produtividade. ‘Para que você vai descansar? Meia hora só de almoço e volte a trabalhar’. Então, a legislação vem para conduzir à este modelo cultural. A legislação reduzindo direitos e exigindo maior produtividade, aí temos na parte educacional também uma condução para as profissões técnicas, para que se produza e não se discuta, tanto é que as matérias de filosofia e sociologia, que despertam o senso crítico, têm sido desprestigiadas e sido retiradas da grade curricular, para se incluir matérias técnicas, de formação e de produção”.

...e também temos a reforma previdenciária:

“Sim, se ela passar aí o Brasil teremos pessoas culturalmente formadas para produzir, para trabalhar sem garantias de muitos direitos e fazendo horas extras. Nas escolas, não teremos formação de pessoas com senso crítico, mas meras matérias técnicas. Também seremos formados a trabalhar a vida inteira, já que não poderemos nos aposentar”. 
 
 ...estamos caminhando para um modelo explorador, um modelo chinês de produção...

“Sim, a produção, a alta produtividade como um fim em si mesmo...”.

Na China, trabalhadores são explorados ao máximo, pouco tempo de almoço e carga horária elevada. Alguns funcionários chegam a dormir no próprio serviço. Por conta disto, fábricas chinesas de indústrias americanas registram altas taxas de tentativa de suicídio. Os casos mais conhecidos foram registrados entre 2010 e 2012, na  Foxconn, conhecida por montar gadgets para gigantes como HP, Nokia, Sony, Dell e Apple. 

Ou seja, as coisas estão sendo conduzidas não pela vontade da população, mas pelo lobby das grandes empresas, muitas delas americanas que tem suas bases aqui no Brasil. É interessante deles que o Brasil se torne uma nova China, uma nova Taiwan, com produtos mais baratos. E a democracia, onde fica?

“A democracia é um conceito muito amplo e na essência representa a possibilidade que cada um tem de participar das decisões que alterarão sua vida. Por exemplo, na medida em que a grande maioria da população não tem acesso aos rumos de sua vida, podemos então dizer que a democracia neste conceito fica fragilizada, sim. São mudanças sociais na vida das pessoas e elas não são consultadas para poder opinar sobre isso”.

Com este modelo que está sendo introjetado não teremos democracia, pois o cidadão não terá condições de se desenvolver na sua plenitude. Ele vai nascer pobre em um país onde a riqueza já é muito concentrada e em um modelo de “ditadura econômica”. Estamos caminhando para uma ditadura economista, sem igualdade social, sem direitos, sem oferecer a garantia de o cidadão se desenvolver, escolher seus próprios rumos, buscar investir em sua intelectualidade...

“...neste ponto, concordo, sem dúvida. Digamos, como se fala na economia, ‘não há almoço grátis’. Estas alterações todas, de fato, são resultados da pressão da atividade econômica capitalista, dos grandes conglomerados, para que possam majorar seus lucros, sem dúvida. Você retira alguns direitos sob o argumento de competitividade internacional. O que é esse argumento? Para eu poder disputar com a China, eu preciso reduzir direitos, porque se eu pagar direitos eu não consigo competir com ela, que não paga praticamente direito algum. Então, o argumento da competitividade é basicamente reduzir direitos para aumentar margem de lucro”.

Aumenta-se a exploração, aumenta-se o lucro e diminui-se o custo:

“Sim”.

Hoje, no Brasil, quem está a favor do trabalhador?

“Há alguns nichos de representação no Congresso, em alguns casos...”.

...mas sem representatividade...

“...pois é, a grande sacada seriam os sindicatos, fazer a reforma sindical, para dar força aos sindicatos para que de fato eu possa negociar os rumos de minha própria vida, inclusive abrindo mão de alguns direitos, consciente da situação e com força de negociação. Agora, com o modelo sindical que temos, engessado e com cortes de pontos e caso de greve, o trabalhador realmente fica sem ter instrumentos de pressão e negociação”.

Sem poder de negociação, sem estudo e sem salário, ou seja, uma “ditadura econômica”. Agora, permita questionar a atuação de sua classe: até que ponto a magistratura poderia fazer maior pressão para que houvesse a ampliação da democracia e dos direitos do cidadão, que está sendo atacado em todos os flancos (trabalhista, previdenciário e educacional)? A AMATRA não poderia ser mais efetiva e contundente neste debate, fazendo pressão e se impondo no Congresso? Ou este não é o papel do judiciário?

“Internamente, na própria categoria dos juízes, existe uma divisão interna muito grande de pontos de vista em relação a isto. Há aqueles que dizem: ‘tem que se brigar, colocar posição firme, pois a redução de direitos também desembocará na redução do prestigio do judiciário trabalhista, até na sua extinção’, e tudo o mais. Já há outro grande grupo, forte entre os juízes, que diz do juiz como sujeito imparcial do processo, que não pode tomar partido nem de um lado, nem de outro, sob pena de ser considerado parcial. Assim, consideram que em discussão política juiz não tem que entrar, que deve aprovar a lei como deve ser, pelos atores políticos e sociais e o juiz aplica a lei que foi aprovada, sem entrar em defesa de um ponto de vista, nem de outro. A Associação Nacional dos Juízes do Trabalho tem atuado bastante, com apoio das associações locais, por exemplo, o presidente da sessão da AMATRA de Mato Grosso vai a Brasília, em conjunto com os outros juízes, e eles visitam o Congresso Nacional, cada um visita sua representação política e tudo o mais”.

O momento é inoportuno para se discutir a reforma trabalhista, com um presidente com aprovação mínima e com um Congresso Nacional desacreditado pela opinião pública?

“Em uma questão política, pode-se até verificar esta vertente, mas não creio que este seja o principal problema. O principal problema das reformas é a pressa e o fato delas alijarem o debate. As leis são alteradas e você nem fica sabendo que aquilo foi discutido e nem teve a oportunidade de opinar e discutir. Ainda que fosse um momento político conturbado como o atual, mas com uma ampliação do debate e da discussão, a lei teria maior legitimidade, mas na medida em que a sociedade não é chamada para participar destas discussões, aí de fato tem-se o problema”.

Percebemos que estas reformas são aprovadas a toque de caixa por um bloco no Congresso Nacional que, certamente, com a “Operação Lava Jato” cairá em breve, alvos de investigação, de pedidos de prisão, etc. É possível considerar esta pressa em aprovar tudo, esta falta de debate, estas manobras políticas para se evitar o debate e acelerar a votação, como um fator para eventual anulação destas reformas?

“Esta é uma discussão muito complexa, mas a resposta seria: não. O fato do deputado ou do senador ser investigação não o descredencia para votar no projeto? Não. Os projetos aprovados debaixo desta turbulência política podem ser aprovados? Não. O que pode acontecer é uma renovação do Congresso Nacional e a criação de novas reformas, até mesmo para recuperar direitos retirados. Isto é possível e a legislação tem esta dinâmica. Novos políticos poderão restituir direitos perdidos, mas no aspecto jurídico: o juiz está autorizado a deixar de aplicar uma lei prejudicial ao argumento de que ela foi aprovada em um ambiente político conturbado? Não”.

O que dizer ao cidadão comum que se sente alheio a este debate? Ao batedor de panela que derrubou a ex-presidente Dilma e que hoje não se vê nas ruas?

“O momento de brigarmos no aspecto político é este, fazer pressão na representação política local, deputado e senador, mandar email e fazer cobranças, pois este é o momento em que estas reformas serão feitas. A previdenciária irá prejudicar bastante o cidadão, com redução de valores, aumento no tempo de contribuição, aposentadoria somente aos que chegarem aos 70 anos, etc. O momento para se discutir é agora, procurar se engajar, procurar suas representações para reduzir o impacto. Ao que tudo indica no ambiente político as reformas virão, mas elas podem vir com menos prejuízos. Percebo nos ambientes que tenho frequentado, nas negociações e no Congresso Nacional, que os sindicatos de uma forma geral têm participado e discutido. Já houve, digamos, por parte do executivo algum passo atrás em algumas questões mais drásticas. Isto é fruto desta pressão, que poderia ser maior, mas que ainda é feita timidamente”.

* Com colaboração de Rogério Florentino Pereira, na elaboração das perguntas
** Demais partes da entrevista nos links oferecidos em "Leia Mais".
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