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Notícias / Entrevista da Semana

"Moro hoje não é juiz, é Polícia Federal e Ministério Público", dispara jurista Nelson Nery Jr; veja entrevista

Da Redação - Paulo Victor Fanaia Teixeira

Nas ruas, nas praças e nos botecos, nunca o brasileiro conversou tanto sobre assuntos jurídicos como nos tempos de hoje. A “Operação Lava Jato”, cuja ação penal é encabeçada pelo juiz federal de Curitiba, Sérgio Moro, é certamente o responsável por inaugurar este cenário. Na internet, cidadãos se sentem confortáveis em posar de especialistas jurídicos e muitas vezes o resultado é desastroso: incitação ao ódio, à pena de morte, à vingança e à agressão física como forma de condenação. O produto disto é uma sociedade faminta por vigiar e punir o comportamento alheio. Acima de tudo isso, está o defensor máximo da Constituição, o Supremo Tribunal Federal (STF). Dos últimos anos para cá, ele tem consumido boa parte das tintas da imprensa e da opinião pública. 'Até que ponto isto é saudável para a justiça?', questionam-se os juristas. É complicado entender, mas o Judiciário é o único poder que não pode, e nem deve, atender aos anseios do povo, ainda que vivamos em um Estado Democrático de Direto.

Esta crítica não se limita ao Supremo. Cabe a toda a justiça. A vaidade é uma tentação, mas deve ser reprimida. Por conta dela, muitos juízes já assumiram o papel de Super Homens ou paladinos da moralidade e tropeçaram no próprio cadarço.

Sobre a complexidade da justiça e suas inovações, Olhar Jurídico traz esta entrevista especial com um dos maiores advogados e juristas de todos os tempos, Nelson Nery Jr. Doutrinador de Direito Processual Civil, Nery Junior já foi promotor do Ministério Público Estadual de São Paulo por 27 anos. Autor ou organizador de mais de 90 livros, encabeça o curso de direito na Universidade Estadual Paulista (UNESP) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) desde 1979. Seu nome consta em mais de 650 mil jurisprudências, decisões e acórdãos do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e em mais de 02 mil no STF. O profissional ainda elabora pareceres jurídicos, cerca de 3 a 4 ao mês, sendo que cada um deles custa em média R$ 350 mil.

Acomodado na sala do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Mato Grosso (OAB-MT), Leonardo Campos, a convite do próprio, após uma palestra ministrada na manhã desta quinta-feira (04), Nelson Nery Jr. gentilmente conversou com Olhar Jurídico e não poupou o verbo: criticou a condução coercitiva do ex-presidente Lula, defendeu a soltura do ex-ministro José Dirceu, acusou o juiz Sérgio Moro de agir como promotor e avaliou a prisão preventiva do ex-governador de Mato Grosso, Silval da Cunha Barbosa. A íntegra deste diálogo você confere abaixo:

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Nelson Nery Jr., no Brasil tem havido certo mal estar entre o Poder Legislativo e o Judiciário. O senhor acredita que, hoje, o Supremo esteja legislando?

“Eu vejo assim: as funções dos poderes de Estado no Brasil estão definidas na Constituição e o Supremo não tem a função legislativa, somente em uma hipótese: Súmula Vinculante. Aí sim a Constituição expressamente autoriza o STF a legislar”.
 
Súmula Vinculante: criada em 30 de dezembro de 2004, com a Emenda Constitucional n° 45, que adicionou o artigo 103-A a Constituição Brasileira. Basicamente diz que quando determinado assunto é votado e aprovado pelo Supremo Tribunal Federal, por pelo menos 2/3 do plenário, se torna um entendimento obrigatório. A partir de então, todos os outros tribunais e juízes, bem como a administração pública, terão que seguir. Na prática, adquire força de lei.

“Eu até sustento o controle da Constitucionalidade da Súmula Vinculante, pois existem Súmulas Vinculantes inconstitucionais, o exemplo maior é a Súmula Cinco. Aliás, o Conselho Federal da OAB pede revogação dela, ela ficou na pauta do Supremo por anos. Na presidência do ministro Ricardo Lewandowski, todo dia ela entrava na pauta e saía, pois não dava tempo de julgar. A Súmula Cinco é o protótipo da Súmula Vinculante, inconstitucional. Não é uma lei? Eu acho que é uma lei, tem natureza de lei, geral e abstrata, e pode ser inconstitucional, por que não? Por isso eu sustento o controle concreto. Mas o STF fica desesperado e acha que não pode. A OAB quer a revogação da Súmula Cinco”.
 
Súmula Vinculante 5:  “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”.
 
“Estão contrariando uma súmula do STJ, que estava certa. O Supremo diz: ‘não é nulo e mesmo se não teve advogado, o processo está válido’. Como? Um processo para demitir funcionário? Lá falam, ‘olha, eu vou te dar a defesa neste processo administrativo, dou a palavra, o senhor pode fazer sua defesa’, está dando defesa, mas não estou dando ampla defesa. A Constituição garante ao acusado ampla defesa, seria ampla se ele tivesse conhecimento técnico. Mas, ele sabe se a portaria é inepta? Ele sabe se já houve prescrição da pretensão punitiva administrativa do Estado? Então, ele não está com ampla defesa, então esta súmula é inconstitucional, ele precisa de um advogado, de uma defesa técnica”.

Embora o processo seja administrativo, ele tem caráter judicial, pois parte do princípio que o advogado é indispensável para a administração da justiça. Correto?

“Exatamente, a própria Constituição fala para se garantir ao acusado um Processo Administrativo com contraditório e ampla defesa. Agora, o grande problema é que tudo é sazonal no Brasil, isso é feito no Brasil inteiro, prefeitos e governadores do Brasil inteiro já entraram com mais de 500 mil ações pedindo anulação de comissão administrativa, pessoas que pedem reintegração dos cargos, atrasados, promoções, isso tudo para quebrar o Estado, o município, então pronto, vamos dizer que está tudo válido, vale tudo, daqui a uns 10 anos revogam tudo, dizem que é inconstitucional e pronto, revogam a Súmula. No Brasil é isso”.

Estamos com um ano do novo Código do Processo Civil (CPC) e vemos decisões do Supremo que estão impactando no Direito Civil, como na questão do casamento homoafetivo. Como isto se dá no âmbito do processo?

“O Supremo ganhou um protagonismo exagerado a meu ver, decidindo questões que não poderia decidir, por serem de competência do Poder Legislativo, por A ou B razão, o STF tem assumido esse protagonismo no Brasil por muitas vezes fora da Constituição. Legislar é tarefa do Congresso Nacional. Agora, questão do foro privilegiado, o Senado deu clara demonstração de que é tarefa do Parlamento legislar sobre o foro, não é do Supremo. O Senado aprovou por 75 a zero, todos votaram e não houve divergência. Isto será aprovado em dois turnos, por ser uma emenda constitucional, de todo modo é o parlamento legislando sobre matéria que lhe compete. Não é o Supremo que deve dizer ‘aqui eu vou dar foro privilegiado, ali não vou dar’. Como? Se a Constituição estabelece, como o Supremo vai dizer ‘vou dar aqui e não ali’. Então ele não vai interpretar a Constituição, vai mudar a Constituição - e é o que ele tem feito – entendeu? Cada um tem que ter sua esfera de atribuição. O Supremo tem que julgar e o legislativo tem que legislar. Quando o Supremo legisla, contraria o Estado democrático de direito”.

Qual a consequência desse protagonismo exagerado do Supremo?

“Ruptura institucional, pois vai chegar uma hora que haverá embate, confronto. Evidente que já existe uma ruptura da Constituição. O Supremo legislou sobre a questão da homoafetividade. Ele não interpretou a Constituição, ele mudou o texto. Onde está escrito ‘homem e mulher’ ele interpretou ‘ser humano’. Ora, ali não está escrito ‘ser humano’ ali, está escrito ‘homem e mulher’. Aí o Código Civil, que é de 2002, repete a Constituição de 1790 e o Supremo declarou-o inconstitucional. Mas como, se o Código Civil repetiu um texto da Constituição, como pode ser inconstitucional? Entende? E essa discussão, na Constituinte de 1988, houve um debate de semana sobre se deixava ‘ser humano’ ou ‘homem e mulher’ no texto da união estável. A Sandra Cavalcanti, que foi deputada da Constituinte, escreveu artigo no Estadão de página inteira dizendo: ‘ora, nós discutimos isso, o parlamento discutiu se seria ‘homem e mulher’ ou ‘ser humano’ e depois de muita briga resolvemos que seria ‘homem e mulher’ e não ‘ser humano’. Então o Supremo mudou o texto, no artigo que diz ‘homem e mulher’ o STF diz: ‘não, não pode ser, tem que ser todo mundo’. Desculpe, mas quem tem que legislar não é o Supremo, é o parlamento. Não sou contra a união dos homossexuais, sou a favor, todo mundo tem que ser a favor, está aí no dia-a-dia, o direito não pode ignorar as coisas que acontecem na sociedade, mas isso não significa que eu deva apoiar uma decisão errada do STF. Ele errou ao decidir".

Como o STF teria que fazer?

"Deveria deixar o parlamento decidir. O que ele tem que fazer é: em um caso concreto, onde uma pessoa entrou com ação, decidir: ‘reconheço que pode etc’, e resolver este caso concreto. Não tem que falar para o Brasil inteiro: ‘oh, liberou geral, pode...’. Está legislando? Aí dizem: ‘Ah, isso é ativismo’. Não existe ativismo bom ou mau. Se você fala em ativismo hoje nos Estados Unidos ou no Canadá, isso é sinônimo de execração do poder judiciário. O ministro [Luiz Roberto] Barroso fica falando: ‘não, porque tem ativismo que é bom, que vem em Favor da sociedade’. Não tem ‘ativismo bom’. Se você pega um Supremo de uma Constituição complicada, como a da Venezuela, o ‘ativismo’ dele será aquele de fazer coisa ideológica contrária ao que o povo quer. O ativismo nunca é bom, ele é contra a constituição. Nos EUA, essa ideia de ativismo começou há 40 anos e hoje já abandonou e o tema é maldito, lá e no Canadá, onde nasceu o tema do ativismo. No Brasil, estamos 40 anos atrasados, simplesmente isso”.

Nós vimos claramente na Venezuela quando o judiciário interferiu no legislativo, aqui as interferências não são tão explícitas, mas elas acontecem e são frequentes. Estamos no mesmo caminho?

Estamos no caminho da Venezuela, infelizmente, um pouco mais disfarçado, menos ostensivo, mas estamos no caminho. Por exemplo, pode o judiciário afastar um membro de outro poder, como o parlamento? Não pode. O Supremo não pode tirar um deputado ou um senador do cargo, não pode. Ele pode condenar: ‘ah, condeno-o a dois anos de cadeia’, condena por um crime, isso o judiciário pode, mas para tirá-lo do cargo ele tem que mandar o Acórdão para a Câmara e falar: ‘olha, tem um deputado aí que eu condenei, o Zé Dirceu, condenei no mensalão. Agora, não posso tirar ele do cargo, vocês é quem farão isso’.  Aí o parlamento olha e vê se cassa ou não cassa o deputado. Isso é democracia e independência dos poderes. O judiciário julga, ele não pode tirar o cara do cargo. ‘Ah, mas o Eduardo Cunha está fazendo bobagem’. Não pode tirar do cargo, sorry [desculpe]. Quem tem que tirar é o próprio parlamento. Agora, o que o Supremo fez: afastou Renan Calheiros do cargo, o Teori [ministro Teori Zavascki] o afastou do cargo, isso não pode, isso é inconstitucional. Assim como o Senado não pode cassar um ministro do Supremo. Agora, se for processado por crime de responsabilidade, Artigo 52 da Constituição, que dá poderes ao Senado para julgar um ministro do Supremo em crimes de responsabilidade, aí tudo bem, é o judiciário que está julgando, o Senado se investe de judiciário para julgar. Enquanto não tivermos este respeito...todo mundo querendo que o STF prenda Eduardo Cunha, prenda Renan Calheiros, todo mundo achando bacana. Desculpe, está contra a Constituição e quando o Renan resistiu e disse: ‘não vou sair do cargo’, ele tinha toda a razão. Não entrando no mérito de ‘ah, mas ele era bandido’, não entra o mérito, estamos discutindo o direito. O Supremo não tinha direito a tirar um parlamentar do cargo, ainda mais um presidente no seu poder”.

De 1988 para cá, a Constituição Federal já sofreu uma série de emendas. Está na hora de se rever a Constituição ou continuar emendando é o caminho?

“Somos uma democracia muito recente ainda, de 1985. Antes disso tivemos democracia em momentos curtos e instáveis. Podemos falar que o direito constitucional começou mesmo em 1985, antes disso era um arremedo. De lá para cá são 32 anos e acho que é um tempo muito curto para falarmos em maturidade constitucional, mas tendo em vista as mudanças, ora, tivemos mais de 100 emendas constitucionais, contando as emendas de revisão. Como que uma Constituição pode ter mais de 100 emendas em 32 anos? É muita coisa. Não sei se o caminho seria uma nova constituinte, zerar tudo e começar de novo. Acho que não temos clima para isso, nem ‘densidade política’ para uma reforma Constitucional integral. Mas acho necessário que o STF pare de se investir de poder legislativo. Se um ministro quer legislar, ele que faça um ‘concurso para legislador’, isto é, se apresente como candidato a deputado ou senador para mudar a constituição. Do jeito que está não dá”.

Não podemos nos esquecer, entretanto, de que chegamos a um ponto onde não dá mais para ‘parar’ o Supremo, tendo um legislativo desacreditado, um executivo execrado e desacreditado e um judiciário constituído deste poder para mandar e desmandar em todo o resto...

“Vamos virar a Venezuela! (risos), onde o legislativo aprova uma emenda constitucional e vem o judiciário chavista e diz: ‘não, isso aqui não vale, esquece isto aqui’, prende o deputado, manda embora. Vamos virar isto! Mas, é claro que quando falo de Venezuela, não estou dizendo que o nosso Supremo é o Supremo da Venezuela, é diferente. O pessoal lá é absolutamente ideológico, os nossos ministros têm preparo, todos eles são professores de universidade, tudo, etc. O contexto é que é parecido”. 
 
 
Concorda então que existe um fenômeno de politização da justiça e de judicialização da política?

“Isso nem sou eu que digo, todo mundo está dizendo isso”.

O Ministério Público, assim como o Supremo, também está se investindo de poderes excessivos?

“Está, os dois estão”.

Uma crítica comum na advocacia é que o MP tem assumido o papel do juízo...

“A gente pode falar que a recíproca é verdadeira, pois o [juiz federal de Curitiba] Sérgio Moro hoje não é juiz, ele é Polícia Federal, é Ministério Público Federal e depois ele julga. Ele faz tudo. Quando ele manda abrir um inquérito, ele já condenou a pessoa, ele só está formalizando ali”.

Está dizendo que o juiz federal Sérgio Moro age como promotor?

“É óbvio! Ele é juízo de instrução, se você pegar o sistema judiciário da França e da Itália, o Sérgio Moro seria o juiz de instrução, que na França não pode julgar, ele pode instruir o inquérito e enviar para outro juiz julgar, mas aqui ele faz as duas coisas, ele é o juiz de instrução e o juiz do judiciário”.

O modo de agir dele contamina o processo da Lava Jato?

“É obvio! Olha, ninguém pode ser a favor da corrupção, ninguém é a favor, eu também sou contra, todos são, como você vai compactuar com a corrupção em um país? Outra coisa, porém, é dizer que as inconstitucionalidades perpetradas estão certas, não estão certas. Veja o caso de José Dirceu: ele foi condenado no processo do ‘Mensalão’ e mesmo condenado ele continuou a fazer as coisas, ele tem o pé na ‘Lava Jato’ também. Quer dizer, o pessoal é descarado. Muito bem: José Dirceu foi condenado por Sérgio Moro em dois processos penais, nenhum transitado em julgado, ele apelou e os apelos tramitam lá no Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Quer dizer, ele não tem condenação em segundo grau. Por que ele está preso há dois anos e meio em prisão preventiva? Qual foi o decreto? ‘Não, porque se ele estiver na rua, ele pode influir na produção de provas, etc’. Espera, mas o processo terminou já. Então, Sérgio Moro deveria condenar o cara e soltar, pois já colheu a prova, ele não apresenta mais o perigo de influenciar testemunha e tal. O Moro para ser correto deveria dizer: ‘condeno José Dirceu’ e na mesma sentença ‘expeça-se alvará de soltura’. Tudo aquilo que sustentava a preventiva, não sustenta mais. O Supremo agiu certo do ponto de vista jurídico, ao soltar José Dirceu. A opinião pública meteu o pau, mas ele agiu certíssimo”.

A justiça está dando ouvido demais para a opinião pública, a imprensa e aos apelos populares?

“Sim, o Supremo está jogando para a torcida, quando na verdade o papel de uma Suprema Corte é ser contramajoritária. O que é você pegar uma lei aprovada por 600 parlamentares do Senado e da Câmara aprovada pelo povo brasileiro, aí vem uma ADI e diz: ‘isto aqui é inconstitucional’. Ele está indo contra o povo. A função dele é ser contramajoritária, é contra a maioria mesmo, não tem que ouvir o povo. ‘Ah, o povo está achando que...’, esquece o povo! Se o direito e a Constituição diz que é isso, que tem que soltar José Dirceu, solte José Dirceu”.

Quais os riscos para o juiz, alvo da superexposição da mídia e das paixões populares?

“O risco é grande, assim como houve a superexposição do juiz federal envolvido na operação ‘Mãos Limpas’, na Itália. Quer dizer, de quando em quando você precisa ter uma ruptura no processo de corrupção do país. A corrupção é uma coisa antes da ‘Lava Jato’ e depois da ‘Lava Jato’, ou do próprio ‘Mensalão’, vamos dizer. Agora, quem entra neste tipo de processo sofre superexposição mesmo. Foi o caso de Joaquim Barboza”.

A vaidade é uma tentação?

“É uma tentação, e aí se cogita a possibilidade de Joaquim Barboza ser candidato em uma eleição para presidente da República, de Sérgio Moro concorrer para presidente da República. Esse é o risco que o juiz que fica exposto corre”.

Existe o risco desta situação afetar a qualidade da condução do processo?

“Existe esse risco, pois você começa a se sentir... eu vi o depoimento do Moro no Senado Federal, junto com o ministro Gilmar Mendes, no início das discussões sobre a lei do abuso de autoridade. O Moro então falou: ‘espera um pouquinho, quer dizer que se fizer isso até eu posso ser processado?’. Como ‘até eu’? Você é do povo, meu filho, se você cometer crime será processado. Então, o cara está tão imbuído de que ele é o Super Homem, o paladino da moralidade do Brasil, que ele não acha que seja possível ele ser processado”.

A prisão preventiva se tornou instrumento de tortura para forçar uma confissão ou uma colaboração premiada?

“Todos os advogados falam isso para Sérgio Moro e ele nega de pé junto. ‘O senhor está prendendo para a pessoa se constranger e delatar’. Ele diz: ‘não, não é isso’. É isso sim! Tornou-se instrumento vil de tortura. Na verdade, quando o ministro Gilmar Mendes deu seu voto de desempate pela soltura do José Dirceu, ele falou isso. Os argumentos da prisão preventiva são frágeis. É verdade, quando das primeiras prisões determinadas por Moro lá atrás, você olhava e pensava: ‘espere um pouco, mas por que está prendendo o cara?’, e a condução coercitiva? Por que fizeram condução coercitiva do [ex-presidente] Lula, por exemplo? Nem intimou o sujeito, é preciso intimar primeiro. O Código do Processo Penal diz: ‘intimado, se recusar...’, aí você conduz. Ele mandou conduzir já! Então, quando vem essa nova lei do abuso de autoridade dizer: ‘o juiz que der preventiva fora dos casos previstos em lei comete abuso de autoridade’, os juízes impugnaram esse artigo, mas o Senado manteve. O senador Roberto Requião (PMDB-PR) falou: ‘não, isso aqui vai ficar’. Só está dizendo: ‘você só tem que cumprir a lei’. O juiz não quer nem cumprir a lei? O Sério Moro não quer cumprir a lei. Ele está dizendo que o Senado Federal é a favor da corrupção. Para você ver o nível...”

Para a prisão preventiva é sempre alegada, como fator fundamental, a garantia da ordem pública. Determinados desembargadores consideram isto um critério muito subjetivo. Concorda?

“Concordo, a garantia da ordem pública, um dos requisitos do Código do Processo Penal, é um conceito legal indeterminado, abstrato. Quem tem que dar concretude para ele é o juiz no caso concreto. Ele precisa dizer no que consiste a garantia da ordem pública naquele caso. ‘Por causa disto, disto e daquilo’. Ele precisa esmiuçar isto, não basta dizer: ‘para a garantia da ordem pública, eu mantenho a prisão’. Ele precisa dizer a razão. E normalmente os juízes não dizem ou fazem um floreio e não dizem nada”.

E o argumento de que o réu pode intimidar testemunhas e contatar corréus?

“Acho que não é. A testemunha faz o que ela quiser fazer, entende? Esse negócio de falar que se solto o réu irá correr atrás das testemunhas para intimidar? Ele não pode fazer isso na cadeia? Os bandidos comandam o crime organizado por celular de dentro da cadeia. Se o bandido, o traficante, tem celular na cadeia, por que o Silval não vai ter celular na cadeia também? [Quem garante] que ninguém vai trazer para ele debaixo do pano e ele irá ligar para as pessoas? Então, acho que é muito frágil tudo isso. Precisamos ter uma ruptura no sistema de corrupção no Brasil, sim, estão certas as operações como a ‘Lava Jato’, mas é preciso preservar o devido processo legal e a Constituição. As pessoas dizem que quem diz isso é um ‘garantista’, é um termo que eles acham pejorativo. Eu não me acho ‘garantista’, me acho respeitador da Constituição, é um pouco diferente”.

Essa instabilidade política tem trazido insegurança jurídica?

“Tem sim, pois a reforma trabalhista, a reforma previdenciária, a reforma política e a tributária, são questões crônicas no país, são mudanças que deveriam de ter sido feitas há 50 anos, há 80 anos. Todo governo que entra diz que irá fazer e no final acham que são medidas muito impopulares e acabam não fazendo. O Sarney ia fazer, o Collor, o Itamar, Fernando Henrique, Lula e Dilma, todos prometeram as reformas, Fernando Henrique chegou a fazer uma reforma previdenciária, mas de baixo impacto. E por que não fizeram? Pois foram medir a temperatura e viram que eram medidas impopulares. Então nenhum destes governos quis ser impopular. O Michel Temer falou: ‘quer saber? Eu já sou impopular mesmo, me deixa fazer esta reforma’. Ele assumiu um papel que todos deveriam de ter assumido, com mais coragem, não fizeram e agora cai tudo na cabeça dele. Isto não significa que vamos mudar o governo dele de mau para bom, o governo não é bom, é ruim. Mas não devemos crucificá-lo por tentar fazer a reforma, ela precisa ser feita”.

...por outro lado...

“A forma como as reformas estão sendo conduzidas, de cima para baixo, a toque de caixa, isto é criticável, mas que elas têm que ser feitas, não há dúvidas. ‘Ah, mas o processo deveria ser mais aberto, democrático, não tão apressado, sem pegar base aliada e manobrando’. Tudo bem, você está criticando a forma de fazer, mas o âmago da coisa é: ‘vamos fazer a reforma, vamos’, tem que fazer”.

Estas reformas não são também, de certa forma, mudanças na Constituição?

“Destas mudanças que estamos falando aqui, algumas delas precisam de aprovação na Constituição, outras só na legislação infraconstitucional você consegue mudar. Você falou uma coisa importante, se você muda o cérebro da coisa, o resto vem por acréscimo. É uma forma de se encarar a questão”.
 

Qual a contribuição do CNJ desde quando ele foi instituído?

“O CNJ teve uma participação importante logo no inicio, pois ele nivelou o Brasil. Tínhamos tribunais de justiça muito bem estruturados, com uma tradição cultural maior, de respeito, etc, como no Rio Grande do Sul, em São Paulo, que já tinham uma conformação mais ou menos uniforme. Haviam, entretanto, tribunais, me recordo do Piauí, do Espírito Santo, Maranhão, o próprio Mato Grosso, que faziam o que queriam, a lei e a Constituição eram os desembargadores, faziam nepotismo, etc. O CNJ veio para dizer: ‘Vamos uniformizar tudo? Vamos acabar com nepotismo? Fazer concurso aqui ou lá’. Esse nivelamento foi superimportante no momento em que o CNJ foi criado, mas ele começou a se achar, passou a fazer coisas que não estavam sob sua competência, começou a legislar, por exemplo. O Supremo decidiu que união entre pessoas do mesmo sexo poderia configurar união estável, não aprovou o casamento gay. O CNJ no dia seguinte: ‘está aprovado o casamento gay e se o oficial de registro civil não fizer será punido’, veja, mandou punir! Quem é o CNJ para criar norma sancionadora em virtude de uma decisão que nem falou o que eles dizem que está falando (sic). Ou seja, às vezes o CNJ se empolga e faz algumas coisas que não tem que fazer”.

E quem controla o CNJ?

“O Supremo Tribunal Federal”.

Existe corrupção na justiça?

“Há corrupção no judiciário, no MP, no Tribunal de Contas. Certamente deve ter aqui ou acolá, mas não é a regra. Assim como a corrupção em órgãos públicos não é a regra. Tem setores que funcionam perfeitamente. Você precisa encarar estes casos de corrupção como exceção, que realmente são. Muitos estão dizendo que a ‘Lava Jato’ tem lá uma caixa preta do judiciário, que já sabem quem são os ministros e desembargadores corruptos e que a qualquer hora podem destrancar essa caixa preta e saírem denunciando todo mundo por aí. Por isso é que certos setores que a gente sabe que podem ter problema já estão com as barbas de molho (sic)”.

Relação juiz – advogado – promotor:

“Existe infelizmente um preconceito, em geral, dos juízes, eles acham que advogados e promotores são menos que eles. Os juízes acham isso. O Promotor, por sua vez, acha que o advogado é menos que ele. O juiz até acha que pode ser igual a um promotor, mas o advogado é sempre menos. Quando na verdade não existe isso, estão os três no mesmo nível de atuação na esfera do processo. Cada um na sua esfera e é necessário o respeito mútuo. Infelizmente o preconceito existe. O juiz acha que o advogado é mal preparado ou que é picareta, às vezes ele confunde a figura do advogado com a pessoa do cliente. Se você é advogado de uma pessoa que cometeu um crime, você é um advogado criminal e está defendendo os interesses do seu cliente, mas o juiz já acha que você é quem é o traficante, o assassino, etc. Isso acontece e é difícil de combater, é um fenômeno cultural. Como se combater isso? Chegar e dizer: ‘juiz, a pessoa que está sendo acusada do crime é meu cliente, eu sou advogado, tenho escritório, trabalho, tenho família. É difícil você separar isso, pois às vezes eles se confundem”. 

No Brasil, sobretudo em Mato Grosso, temos um problema grave de demarcação de terras. Os processos de demarcação e reintegração de posse demoram anos. Por que a justiça é tão lenta nestas questões?

“Reintegração de posse é interdito possessual, ele tem que ser imediato. Se o judiciário demora 3, 4, 6 anos para fazer, a coisa se consolida. E aí você vai executar uma reintegração com as pessoas já há 06 anos em posse das terras? É um conflito que você não consegue segurar e aqui em Mato Grosso acontece muito isso”.

O que o novo CPC traz de novo a respeito?

“Mecanismos sempre existiram, os interditos possessórios, quer dizer, o esforço imediato da posse, a concessão de medida imediata da posse, existe desde o direto romano, estamos falando de 2500 anos atrás. Então o processo civil no direito romano, há 2500 anos, já previa isso tudo, essa rapidez no processo. Sempre tivemos isso, isso é respeitado no Brasil pelas Ordenações Filipinas, no novo Código Civil de 16, no Código de 2002, no CPC de 1973 e no de 2015. Continua lá, a possessória rápida, com interdito liminar na posse, etc. Agora, por que não anda? O problema não está no CPC, está na falta de estrutura logística do Poder Judiciário. O presidente [Michel Temer] falou neste dia 04 que fizemos um CPC sem saber se tínhamos estrutura para aguentar esta reforma, é bem isso, quero dizer, temos um código rápido, temos a tutela provisória, ou seja, medidas de urgência, temos interditos possessórios, que também são rápidos, e mesmo assim a ação fica 10 anos tramitando. Não tem condição. Então, o problema não é a lei, é a aplicação da lei.  Se você tem um judiciário estruturado e aplica corretamente a lei, você não sofrerá deste problema, terá uma justiça rápida nas causas que devem tramitar rapidamente, como as possessórias e as que envolvem conflitos de terras”. 
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