Imprimir

Notícias / Constitucional

MPT vê 'ilegalidade' em portaria do trabalho escravo, pede anulação e denuncia falta de recursos

Da Redação - Paulo Victor Fanaia Teixeira

Quanto pode retroceder um país com apenas uma canetada? Publicada no Diário Oficial da União desta segunda-feira (16) o governo Michel Temer (PMDB), por meio do Ministério do Trabalho e Emprego, estabelece mudanças no conceito de “Trabalho Escravo” e o combate a prática criminosa. A portaria 1.129/2017, de 13 de outubro de 2017, assinada pelo ministro Ronaldo Nogueira, descaracteriza o crime e dificulta sua fiscalização. Resultado prático de uma agenda de ataques aos direitos sociais, entende o procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho de Mato Grosso (MPT-MT) Marcel Bianchini Trentin que, em entrevista especial ao Olhar Jurídico, avalia ponto a ponto as mudanças impostas a toque de caixa pelo governo peemedebista. Você confere abaixo a primeira parte do diálogo:

A profunda alteração sobre as bases do combate ao trabalho escravo no país, trazida pela portaria 1.129/2017, recebeu amplo, geral e irrestrito apoio da bancada ruralista de Mato Grosso no Congresso Nacional. Segundo o ministro da Agricultura e Pecuária, senador mato-grossense Blairo Maggi (PP), a portaria torna mais claro o procedimento de investigação do trabalho escravo no país e evita “penalizações ideológicas ou por que o fiscal está de mau humor”.

A portaria altera conceitos básicos usados pelos fiscais há décadas, para identificação do trabalho escravo, como por exemplo: conceito de “trabalho forçado”, “degradante” e “em condição análoga à escravidão”. Estes termos baseiam-se nas diretrizes da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Constituição Federal e o Código Penal (CPP).

Com a portaria, só será considerado trabalho escravo quando houver ameaça de punição com uso de coação; cerceamento do uso de qualquer meio de transporte para reter alguém em seu local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador; uso de segurança armada que impeça fuga ou retenção de documentação pessoal.

Também, a divulgação semestral da "Lista Suja do Trabalho Escravo" passará a depender de "determinação expressa do ministro do Trabalho". 

Leia mais:
Adilton Sachetti defende que agora há clareza em definir fiscalização de trabalho escravo

Como o MPT-MT recebeu a mudança? 

“É uma onda de afronta aos direitos sociais. Nós tivemos, recentemente, a ‘modernização’, que eles chamam, promovida pela Reforma Trabalhista, que na verdade precarizou muito as relações de trabalho; tivemos as discussões em relação aos direitos previdenciários e agora eles finalmente chegam ao trabalho escravo. Já estávamos há algum tempo sem fiscalização nesta área por carência de verbas do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) para as equipes de fiscalização. Também, as ‘Lista Suja do Trabalho Escravo’ não estavam sendo mais publicadas. Agora, vem esta portaria totalmente ilegal, pois ela contraria toda a ordem jurídica nacional”.

Por que?

“Para validar uma norma, e a portaria não deixa de ser uma espécie de norma, temos alguns critérios, sejam eles principiológicos ou legais, de hierarquia e de norma. Enfim, estamos diante de uma portaria que vai contra a própria Constituição da República, que traz o valor social do trabalho ao lado da livre concorrência, em seus artigos 1º e 170º. A portaria contraria as Convenções 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que o Brasil ratificou e que tratam da proibição do trabalho escravo e forçado. Por fim, contraria expressamente o Artigo 149 do Código do Processo Penal (CPP)”.
 
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003) 
 
O que muda?

“A nova portaria vem e diz o seguinte: qualquer tipo de resgate só será feito se tiver a privação da liberdade por meio de guarda armada”.

Ou isolamento geográfico que impeçam o trabalhador de ir e vir, correto?

“Positivo. Voltamos ao conceito de trabalho escravo que temos historicamente, hoje, por meio dos filmes. Filmes sobre quando aboliram a escravidão no Brasil, que, aliás, foi um dos últimos países do mundo a fazer isso, em 1888. Então, a portaria traz este conceito de trabalho escravo de volta. Hoje o que chamamos de ‘trabalho escravo contemporâneo’, que são estas quatro espécies de trabalho escravo que mencionei, ficarão agora vinculadas a esta privação de liberdade por guarda armada”.

Ao contrário da portaria, na prática, o que se tem visto?

“Você ainda encontra trabalhadores em condições análogas à escravidão que estão impedidos de sair daquele local, você ainda encontra, principalmente em Mato Grosso. Em nosso Estado temos um observatório do trabalho escravo, que é uma parceria da OIT com o MPT-MT, que faz todo o mapeamento do trabalho escravo. Em primeiro lugar no país está o Pará e depois Mato Grosso. Temos registro de cerca de quatro mil trabalhadores resgatados desde 2003. Temos ainda por aqui situações de privação de liberdade, é verdade. Mas, geralmente não é o que acontece”.

O que acontece geralmente?

“Trabalho em condições degradantes, isso é muito fácil de encontrar. Agora mesmo tivemos um resgate de 20 trabalhadores em Colider, que ensejou inclusive uma Ação Civil Pública. O que temos hoje é isso: trabalhadores vivendo em condições desumanas, aquilo que sempre escutamos e achamos que é mentira, não é, em pleno século XXI, trabalhador dividindo seu habitat com animais, bebendo a mesma água com eles, banhando-se em condições degradantes”.

Configura trabalho escravo, ainda que não haja cerceamento de liberdade pela via armada?

“É, na verdade o conceito de cerceamento de liberdade pode ser afastado de determinado caso. Não necessariamente para se configurar trabalho escravo hoje em dia o sujeito precisa ter sua liberdade cerceada. Basta que ele viva em situação degradante e desumana, ele encontra-se em condição análoga à escravidão. Porque trazemos isso? A Constituição traz a proteção contra o desemprego e o subemprego, no capitulo da ‘Ordem Econômica’ e a proteção e a valorização da ‘Ordem Social’, o trabalho digno e a dignidade. Estes conceitos estão muito vinculados à condição de emprego. Condições degradantes de emprego violam os direitos individuais e conseqüentemente, os direitos sociais. Avaliamos a Constituição como um todo”.

“A escravidão contemporânea ainda é um assunto ignorado por boa parcela da sociedade (em distintas classes sociais). Muitas vezes, inclusive, pelos próprios indivíduos escravizados que não têm, nem mesmo, ciência de seus direitos sonegados e de sua condição, o que torna tudo muito mais fácil e simplificado para seus empregadores” *
 
Como fica a questão do ‘consentimento' no trabalho escravo?

“O consentimento é algo perigoso, pois o ser humano se adapta às mais diversas situações. Temos a grande maioria do país formada por regiões pobres, muito pobres, onde realmente não há direito de escolha, então, qualquer oportunidade que o sujeito tenha, ainda que em condições desumanas, ele vai aceitar. Isso inclusive já foi discussão de outros países, quando emigrantes vinham para o Brasil, principalmente da Bolívia, nós os recebíamos, naquelas indústrias têxteis de São Paulo. Esse sujeito aceitava o emprego, pois dizia: ‘no meu país, a situação é pior do que esta’. Só que a nossa ordem jurídica protege o trabalhador, seja ele brasileiro ou estrangeiro. A ele não é permitido viver nestas condições, não estamos proibindo o trabalhador, mas o explorador de seguir nesta atividade econômica. O consentimento é um direito indisponível ao trabalhador, nestas condições de trabalho. O consentimento não é um requisito para que o trabalho seja análogo à escravidão. Quem avalia isso está sujeito ao todo das normas trabalhistas, OIT, Constituição, CLT. O empregador precisa respeitar condições, mesmo que o empregado se sujeito a não receber salário ou não ter onde dormir, ao empregador é vedado a exploração, afinal ele, com sua atividade econômica, obtém lucro e o lucro jamais pode sobrepujar a dignidade do trabalhador”.

Anulação: 

Considerando como "afronta à Constituição" a mudança trazida pela portaria do Ministério do Trabalho e Emprego, o MPT-MT já protocolizou a Recomendação 38/2017, que pele a Anulação da Portaria 1.129 por vício de ilegalidade. O documento, à que Olhar Jurídico teve acesso, foi assinado neste dia 17 pelo Coordenador da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae),  Tiago Muniz Cavalcanti e pla Subprocuradora-Geral da República Luiza Cristina Fonseca, a Representante do MPF na Conatrae Ana Carolina Alves Roman e Deborah Macedo Pereira, Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão. O prazo para emissão de resposta é de 10 dias. 



ALVES, Cinthia Correa Fernandes. Os Principais Aspectos da Escravidão Contemporânea e como a mesma tem sido combatido no Brasil. 2015.
Imprimir