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Sexta-feira, 19 de abril de 2024

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HÁ SETE MESES

“Quero sair desse sofrimento”: a luta das 44 famílias que vivem em um ginásio abandonado em VG

Foto: Marcos Salesse / Olhar Direto

“Quero sair desse sofrimento”: a luta das 44 famílias que vivem em um ginásio abandonado em VG
No dia 16 de dezembro de 2020, há exatos sete meses, 44 famílias tiveram seus pertences e suas vidas amontoadas dentro do ginásio vereador Valdir Pereira, no Bairro Mapim, em Várzea Grande. Retirados do Residencial Colinas Douradas I e II, sob ordem judicial e forte repressão policial, as famílias foram deixadas no espaço e hoje enfrentam os desafios de um lar sem endereço. No local, a comida é escassa, a água é carregada em baldes e as paredes são feitas de panos, sacos de lixo e papelão. 


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Apesar da escassez de mantimentos, cada um dos moradores daquele pequeno espaço divide o que tem com o vizinho e juntos buscam realizar um sonho em comum: ter uma casa. Enquanto as crianças brincam pelos corredores formados dentro do ginásio, as mães buscam constantemente improvisar tudo aquilo que necessitam fazer em uma rotina como a de qualquer outro brasileiro. 

Ao todo, foram mais de 1.200 famílias despejadas do residencial, construído dentro do programa "Minha casa, Minha vida". Antes do cumprimento de reintegração de posse, feito por efetivos da Polícia Militar e Polícia Federal, os ocupantes já enfrentavam sérias dificuldades com a falta de água e energia, propositalmente cortada para forçar a saída. 

Dessa ação, 126 famílias despejadas foram encaminhadas pela Prefeitura de Várzea Grande para o ginásio. Assim que foram deixados no local, passaram aproximadamente 20 dias embaixo de sol e chuva em um estacionamento localizado na frente do ponto há anos abandonado. Naquele momento, a orientação era para que apenas os móveis ocupassem o interior do ginásio. 

Diante das dificuldades latentes, formou-se uma frente de luta da união das 44 famílias que restaram no local, para que pelo menos um teto provisório fosse oferecido. A partir daí, o telhado de zinco virou um céu sempre acinzentado, a quadra se tornou rua e a vida de cada uma das famílias passou a ser separada por frágeis paredes feitas por materiais alternativos. 

Alguns 'barracos' utilizam folhas ou tecidos diferentes para serem identificados. | Foto: Marcos Salesse/Olhar Direto

O Olhar Direto visitou o local e com a ajuda de cinco mulheres, que são mães e sobreviventes desta realidade conheceu a rotina e os obstáculos enfrentados diariamente por todas as famílias. 

"Apesar de tudo, não sou muito de reclamar da vida"

Mãe de três filhos, duas meninas de 6 e 11 anos e um rapaz de 17, Gislaine Mara Gonçalves, de 37 anos, ocupa um pequeno espaço logo na entrada do ginásio. Quem pede licença para adentrar ao espaço logo encontra uma pequena pia improvisada. Mais dois passos e o quarto, que também é sala de estar, já está à vista do visitante. 

Em poucos metros quadrados, a diarista se organiza para conseguir manter uma rotina básica. Com problemas de saúde que limitam suas possibilidades para voltar a trabalhar, Gislaine supera seus limites todos os dias pelo sonho da casa própria. "Não é fácil viver aqui, já estou no meu limite, mas não vou desistir, só saio daqui se for para a minha casa, daqui eu não saio se não for para a minha casa", desabafa enquanto os olhos se inundam. 

Contando apenas com a mãe e a irmã em território mato-grossense, Gislaine diz que não tem para onde ir e há anos tenta encontrar um lugar para viver. "No começo era perto do terminal, aí para fazer a inscrição tinha que ir lá, pegar senha. Eu ia para lá e não voltava para onde morava. Ia ficava com a minha filha na fila, dormia lá, acordava, ia trabalhar depois voltava, e daí foi sempre assim. Eu levava os documentos, fazia a inscrição, renovava e nunca fui contemplada", conta. 

Gislaine se define como uma mulher forte que não se abala fácil. | Foto: Marcos Salesse/Olhar Direto

Para a mãe das duas crianças, viver no ginásio é também conviver com uma série de vergonhas que atravessam seu ego e principalmente sua autoestima. "É uma humilhação você estar aqui, é triste, o ego da gente acaba, é vergonhoso, é desumano, temos um banheiro coletivo com muita gente, não é limpo do jeito adequado. Olha… você morar dentro de uma lona, é complicado, não é isso que eu queria dar para as minhas filhas", diz. 

Questionada sobre a casa que sonha em ter, Gislaine compartilha que sua vontade é poder reunir toda sua família em uma mesma mesa para poder compartilhar as refeições."Imagino sempre o quarto das minhas filhas, o do meu filho, o meu quarto, minha cozinha, uma mesa para sentar e tomar café da manhã juntos, um almoço, faz muita falta. Sentar no sofá para assistir televisão. Isso tá guardado dentro de mim", finaliza enquanto as lágrimas voltam a deslizar pelo rosto. 

"Minhas filhas chorando pedindo água e não tinha mais água para beber"

As marcas da luta por moradia atravessam o corpo e a memória de Nicole Rodrigues, de 23 anos. Mãe de duas filhas pequenas, a jovem convive com as queimaduras que sofreu em um acidente enquanto ainda vivia no Residencial Colinas Douradas. Já que não podia entrar com móveis no local durante a ocupação, Nicole acabou tendo 80% do corpo queimado quando tentava fazer comida em um fogão improvisado com lata e álcool. 

"No dia não deixaram a ambulância entrar lá dentro, fiquei três meses internada em um hospital, então foi muito difícil. Fiquei na UTI por seis dias e quase morri, tudo por conta de uma casa, e eu preciso de uma casa", relembra a jovem. As marcas tomam quase todo o corpo, dificultando até mesmo o movimento das pernas, que ainda apresentam feridas abertas. 

No dia da desocupação, Nicole conta que chorava muito ao ver suas coisas sendo tiradas do local de forma violenta por parte dos policiais. Enquanto o choro descia pelo rosto e as filhas pediam água, a jovem revela que implorava para que os militares aguardassem algumas horas para que uma pessoa fosse ajudar a retirar o que restava. 

"Consegui sair de lá era umas 16h, aí alguns jornalistas que estavam passando me deram uma marmita para eu comer com minhas filhas. Foi muito difícil, minhas filhas choravam muito. Meus móveis todos na rua, minhas filhas chorando pedindo água e naquela hora não tinha mais água para beber", rememora. 

Morando há sete meses no ginásio, a jovem reafirma que não tem como conseguir um emprego no momento e nem mesmo condições para pagar um aluguel. Sua mãe faleceu quando ainda era adolescente, o pai não a registrou, e a avó que a criou mora em outro estado, distante de Mato Grosso. Naquela pequena porção de quadra, e também em sua vida, é apenas ela e as duas filhas. 

"Quero sair daqui, quero dar uma casa para as minhas filhas, quero sair desse sofrimento, isso aqui é muito difícil. Meu sonho é ter uma casa, minhas filhas crescerem vê que não deixei nada para elas, isso me dói, eu preciso de uma casa para elas, é meu sonho", desabafa. 

Após se recuperar, Nicole ainda precisava tomar banho no hospital onde internou. | Foto: Marcos Salesse/ Olhar Direto
 
"Quem está aqui há sete meses, embaixo de cocô de pombo, é porque precisa"

Os relatos de luta também ocupam os pensamentos de Blenda Caroline, de 26 anos, que vive no ginásio junto das outras 43 famílias. A jovem ocupava uma das habitações do residencial e hoje soma ao desejo dos outros ex-moradores em ter sua própria casa. Vivendo dos poucos 'bicos que consegue fazer' a jovem conta que com a chegada da pandemia, sua situação financeira se agravou e a ocupação surgiu como uma 'luz no fim do túnel'. 

"Fui para o Colinas desempregada, sou garçonete, sempre trabalhei, mas no começo do ano passado eu fui demitida por conta da pandemia. O dinheiro que eu tinha quando surgiu a invasão, já tinha acabado, eu estava devendo três meses de aluguel, e ir para lá foi uma solução, não ia precisar pagar aluguel, era uma luz no fim do túnel", compartilha. 

Com a desocupação, suas esperanças por dias melhores foram substituídas pelo anseio de poder criar suas quatro filhas em um lugar só seu. "A nossa vontade é ter um lugar para criar nossos filhos com dignidade", diz a jovem. 

No diálogo, Blenda relatou um problema contínuo que afeta a vida de todas as pessoas que ocupam aquele mesmo espaço: as fezes dos pombos. Comum em edificações como o ginásio, os pombos pousam nas estruturas próximas do telhado do ginásio e acabam defecando em cima dos móveis e por vezes até mesmo em cima das pessoas que ali vivem. 

Enquanto o assunto surgia, Nicole Rodrigues lembrou do momento em que sua filha acabou sendo atingida pela excreção da ave. "Aqui tem vários pombos, esses dias um deles fez cocô na testa da minha filha. Ela estava tomando banho e escorreu cocô de pombo na testa dela", conta.

Durante toda a entrevista com as jovens, Maria Eva Elidia, de 78 anos, acompanha atentamente a fala de cada uma delas e em alguns momentos murmurava aquilo que pulsava na mente e tocava em seus sentimentos. "Estou aqui esperando uma casinha para mim. Uma casinha de quatro peças, ave maria, eu já punhava minhas coisinhas, meu colchãozinho e já dormia sossegada", diz a senhora. 

Recém operada de um problema que teve no intestino, Maria refletia em poucas palavras um fato que também está presente na preocupação de grande parte da população: o preço do aluguel. "Uma mensalidadezinha a gente arruma um jeito de pagar, mas um aluguel assim que cobram eu não dou conta de pagar. Se eu pagar aluguel, luz e água com o dinheiro que eu ganho, aí o mercado eu tenho que sair e pedir ajuda, nem para farmácia", refletia. 

Assim como Gislaine, Nicole e Blenda, a aposentada Maria Eva também sonha com o dia que poderá adentrar no seu próprio 'cantinho'. "Queria um cantinho para mim. Aqui tá sufocante, aqui está dando doença, as pessoas estão ficando doentes pelo sufoco, agonia, nervoso, tristeza, preocupação. É difícil, meu filho, é difícil", finaliza Maria. 

Da esquerda para direita: Blenda Caroline, Maria Eva, Gislaine e Nicone. | Foto: Marcos Salesse/OlharDireto

Vidas que não cabem no ginásio, história que não cabem em uma página 

Além das quatro mulheres aqui apresentadas, outras também pediram espaço para compartilhar suas dores e histórias. Entre elas estão a vendedora de salgados e mãe de seis filhos, Estéfani Pereira, de 28 anos, e a educadora que ajuda algumas crianças que vivem no ginásio a se alfabetizar, Luciene Alecrim de Souza, de 51 anos. 

As famílias presentes no local relatam que apesar do contato com alguns representantes da Prefeitura de Várzea Grande, nenhuma previsão quanto a entrega das casas foi dada. Os moradores relatam ainda que nos primeiros meses recebiam mini-cestas básicas há cada 15 dias, posteriormente passaram a receber mensalmente e até o momento não receberam a cesta de julho. 

Semanalmente um caminhão pipa é encaminhado para o ginásio para que todas as famílias tenham acesso a água, já que o ginásio não dispõe de nenhum tipo de reservatório. Todo o volume de água recebido é armazenado em pequenos galões e baldes carregados pelos moradores um a um. 

Assista a reportagem em vídeo: 


 
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