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Na Bahia, juiz de paz controlava eleições, Igreja e Justiça

Terra

No Brasil Império, a alteração no Código de Processo Criminal, em 1832, representou a mais significativa das reformas liberais da Regência (1831-1840), com impacto direto nas eleições, a partir da criação da figura do juiz de paz. Eleito pelo voto popular, essa nova personagem do jogo político, que, segundo Raimundo Faoro (Os Donos do Poder, Editora Globo), significou um arejamento na magistratura togada herdada de Portugal, tornou-se "a chave da eleição".

Os juízes de paz passaram a presidir as mesas eleitorais em lugar do juiz de fora e do juiz municipal - os dois últimos membros da magistratura togada -, com auxílio do pároco e dos vereadores. Eram geralmente escolhidos entre pessoas da confiança dos grandes proprietários de terra e de engenhos - quando não eram os próprios -, que controlavam a política municipal graças ao poder econômico. Alguns deles acumulavam ainda cargos na Câmara Municipal, facilitando a manipulação dos resultados eleitorais.

Os juízes de paz surgiram num contexto de renovação do pacto político entre as elites regionais e o governo central, emergido a partir da renúncia de D. Pedro I, em 1831, para atender as aspirações liberais, depois de um período de enorme centralização de poder nas mãos do imperador. Em nível local, a figura do juiz de paz representou, com respaldo da lei, a concentração de mais poder político em mãos do potentado rural, desmandos, abusos e violência.

Com mandato de um ano e direito a reeleição, o juiz de paz era a autoridade policial máxima da localidade, enquanto exercesse a função. Entre suas atribuições, estavam a concessão de fianças, a prisão de criminosos e o combate a desordens. Além disso, competia-lhe presidir a junta de qualificação dos votantes paroquiais, responsáveis pela escolha dos eleitores que elegiam os deputados e senadores.

Um caso típico

Ignácio Anicleto de Souza era padre, proprietário do engenho Amparo da Campina, na Vila de Maragogipe, presidente da Câmara de Vereadores da localidade, no Recôncavo Baiano, e um dos juízes de paz eleito, concentrando em suas mãos, a um só tempo, poder econômico, eclesiástico, judicial e político, o que lhe garantia trânsito fácil nas altas instâncias do poder provincial da Bahia.

Sua força eleitoral era tamanha, que ele destituiu do cargo, por mais de uma vez o concorrente e também juiz de paz Manoel Rodrigues de Souza, assumindo em seu lugar antes mesmo do término do mandato previsto na lei. Também desviou recursos dos cofres públicos municipais, teve contas de sua gestão rejeitadas e, ainda assim, prosseguiu ocupando cargos importantes na Mesa da Câmara de Vereadores da Vila de Maragogipe, além de dobrar o próprio salário, que chegou a atingir 50% dos gastos daquele Legislativo, em 1838.

Em 1835, quando presidia a Câmara de Vereadores da localidade, envolveu-se em um episódio nebuloso. Nada menos do que 1,5 mil réis foram roubados dos cofres municipais, de um total de 2 mil réis destinados pela tesouraria da província para obras públicas. No dia 5 de abril daquele ano, as portas da Câmara amanheceram abertas, sem qualquer sinal de arrombamento, e a quantia havia desaparecido. O juiz municipal isentou possíveis culpados, alegando falta de provas e Anicleto sequer foi questionado por isso.

Os deputados provinciais Manoel Maria do Amaral e Cristóvão Pessoa da Silva Filho, respectivamente, escriturário da Junta da Fazenda e contador da Tesouraria Geral da Província, e membros da Comissão de Fiscalização das Câmaras Municipais, "vendo que não existindo recurso (...) marcado na lei, nada mais resta senão deplorar-se o descaminho que vão tendo os dinheiros públicos".

Longe de partir para o confronto com o padre-mandão e juiz de paz por mais de um mandato, o poder provincial na Bahia, inclusive os deputados provinciais, como vimos, preferiram ignorar os desmandos de Ignácio Anicleto de Souza, que possuía poderes para controlar boa parte do eleitorado da Vila de Maragogipe e, por isso, mantinha fortes articulações junto à presidência da província, senão teria sido barrado nessa instância. Exemplos como esse se proliferaram no Brasil Império.
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