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Com vocação autodidata, músico do Recife faz amplificadores artesanais

G1

Foi por necessidade que Neilton Carvalho fabricou a primeira guitarra, aos 17 anos. Não tinha dinheiro para uma nova – a que usava era o modelo mais barato comprado em um supermercado e vivia "dando bronca”. De uma loja, arrumou braço e corpo para o instrumento. O resto veio de sucata – a mola, por exemplo, era do fogão da mãe. Com a invenção, ele tocou os primeiros sucessos do Devotos [ex-do Ódio], banda recifense da qual faz parte até hoje. A vocação para artesão da eletrônica uniu-se ao lado empreendedor do artista e, junto com amigos, montou uma fábrica de amplificadores valvulados e pedais, a Altovolts, que define como uma ode à tecnologia morta.


Neilton exibe amplificadores criados pela Altovolts. (Foto: Luna Markman/G1)

Na verdade, a história da Altovolts começa quando Neilton ainda era criança e vivia em uma casa de taipa na Bomba do Hemetério, bairro de baixa renda na Zona Norte do Recife, onde a fábrica está instalada. "Cresci vendo a minha mãe construindo o próprio fogão de barro, consertando as coisas em casa. Eu e meu irmão tínhamos curiosidade de saber como as coisas funcionavam. Meus pais também não tinham dinheiro para comprar brinquedos eletrônicos. Então, ia ao mercado público, comprava os mais simples e, em casa, desmontava e montava de novo com peças que a gente encontrava para ficar iguais os da televisão”, conta.


'Gorda' foi a primeira guitarra que Neilton fabricou,
aos 17 anos. (Foto: Arquivo pessoal)A curiosidade encontrou vazão na música. Durante os recreios escolares, Neilton ia 'paquerar' as guitarras do supermercado ao lado do colégio. Com o dinheiro da venda de pulseirinhas que produzia e uma ajudinha do pai, comprou a guitarra que “não era lá essas coisas” - mesmo com as várias reformas executadas pelo músico. Construiu o próprio instrumento, que apelidou de "Gorda", pois era de mogno maciço e pesava cinco quilos, e ganhou fama pelo feito. “Em uma gravação, um repórter perguntou qual era a marca da guitarra que eu tocava e disse que não tinha, porque eu havia montado. Então, isso chamou atenção da mídia, mais até que o nosso som. Isso incomodava na época”, comenta.

Ao assinar contrato com uma gravadora para lançar o primeiro disco do Devotos, Neilton pôde, finalmente, comprar a sonhada guitarra: a Gibson Les Paul. Também adquiriu um amplificador. “Mas eu não conseguia fazer com ela o som que eu ouvia das bandas que gostava. Foi quando eu encontrei um amplificador valvulado em um sebo no Recife. Levei pra desmontar em casa e vi que ele era quase vazio. Entendi que não estava faltando nada, ele era daquele jeito, do jeito que eu queria. E o povo estava dispensando esses modelos em troca das grandes marcas”, disse.


Entre as fases do trabalho, Neilton precia 'sentir o
coração' do aparelho. (Foto: Luna Markman/G1)Em 2006, um encontro de amigos deu origem à Altovolts. “Eu, Gilson [Gerrard], Adriano [Leão] e Márcio [Alves] éramos quatro ‘lisos’ querendo comprar amplificadores. Foi quando arrumamos dois por R$ 80 em um ferro-velho e fizemos eles ressurgirem das cinzas”, conta.

A empresa cuida de todos os detalhes, desde a matéria-prima ao teste no estúdio. Só atende com data e hora marcadas. “Estamos até recusando pedidos por causa da grande demanda”, informou.

Como o serviço é personalizado, a média é de um aparelho por mês. O valor varia de R$ 750 (6 watts) a R$ 3 mil (120 watts). Neilton ainda faz questão de frisar que tudo é escrito em português – no modelo Maltrapilho, por exemplo, os botões indicam “- barulho +” e “- tosco +”. “Queremos que saibam de onde o aparelho veio e que ele saia com o som autêntico da Altovolts”, explicou.

Os amplificadores são valvulados, diferentes dos fabricados atualmente, que tentam simular o efeito do aparelho com válvula, famoso nas décadas de 50 e 60. O primeiro produzido pelo grupo foi o Infierno, cujo acabamento foi atualizado ano passado. “Mesmo que os modelos sejam fixos, a fábrica constrói de acordo com o som que o artista quer”, explica Neilton.

O cantor e compositor Siba, por exemplo, usa o modelo Galo. Foi ele próprio quem encomendou a peça, usada atualmente na turnê do disco "Avante". "Ele tem uma alta qualidade, não deixa nada a dever com os fabricados lá fora e, quando se sabe da origem, do meio no qual ele é feito, o Alto José do Pinho, na minha cidade, fica mais especial ainda. E gosto dessa ideia de se criar algo particular, personalizado. O meu tem um som limpo e potente. Bom para acústico, mas também aguenta pressão. Toda vez que olho para ele no palco, vejo um significado ali", comenta o artista.


Dado Villa Lobos com o amplificador NLT, feito pela
Altovolts. (Foto: Arquivo pessoal)Dado Villa Lobos toca com o modelo NLT - “que tem um som forte, alto e limpo”, explica Neilton. Preste atenção também nos shows de Robertinho de Recife, Márcio Alves (Contrataque) e José Paes de Lira, o Lirinha (ex-Cordel do Fogo Encantado), porque tem "dedo" da Altovolts lá. "Fui eu que pedi um 'ampli' para ele, e o meu veio inspirado no [músico norte-americano] Tom Waits, que tenho usado na turnê 'Lira'. Sou fã do Devotos, do Neilton e, principalmente, da história dele. É incrível o cara ter feito a própria guitarra", disse Lirinha.

Segundo Neilton, a Altovolts é um grupo de pesquisa de tecnologia morta. “Queremos fabricar pré-amplificadores, investir em projeções, entre outros projetos. Tudo resgatando os processos antigos. Não que tenhamos aversão à modernidade. Sou um entusiasta da tecnologia, mas hoje as pessoas descartam tudo muito rápido. Não somos arcaicos nem modernos, apenas queremos dar vida às coisas que já consideram mortas”, explicou.



Aula no Nascedouro de Peixinhos ensina a reciclar
para construir. (Foto: Luna Markman/G1)Mestre
Neilton aprendeu “na marra” a construir seus próprios materiais ainda na infância. É autodidata em artes plásticas, música, computação gráfica e web design. Hoje, aos 40 anos, sente prazer em repassar o que sabe. Atualmente, ministra um curso de fabricação de instrumento musical reciclado no Nascedouro de Peixinhos, em Olinda, para pessoas de todas as idades e classes sociais. “Basta ter gosto pela coisa”, avisa.

O G1 acompanhou um dia de aula e conheceu alunos e suas criações. O compositor Josias José Sebastião, 40 anos, fez um amplificador a partir de uma latinha de sardinha que encontrou no lixo de casa. “Entrei no curso para diversificar minha atuação no meio musical. Agora, eu também estou com mais consciência sobre a preservação ambiental”, disse. Ele gastou R$ 15 no instrumento. Um pedal Fuzz Face da Dunlop, modelo inspirador, custa cerca de R$ 500.

O produtor cultural Wenyton Marinho, 44 anos, ousou no amplificador batizado de Darth Vader, produzido com base em uma lata de biscoito. “É uma peça com sonoridade única. Me matriculei porque gosto de experimentar e queria conhecer na prática esse universo do handmade, trocar experiência com quem compartilha desse interesse”, falou.
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