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Álcool líquido vira ‘vilão’ dos casos de queimaduras em crianças

G1

Um milhão de pessoas sofrem queimaduras por ano no Brasil. Destas, dois terços são crianças, segundo a Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ). A principal causa desse tipo de acidente em crianças de até seis anos ainda é o contato com água fervente. Mas após essa idade são as substâncias inflamáveis, como o álcool líquido, que mais causam queimaduras em contato com o fogo. Segundo a SBQ, acidentes com o álcool líquido causam 45 mil casos de queimaduras em crianças a cada ano no Brasil.

No Dia Nacional de Luta Contra Queimaduras, celebrado nesta quarta-feira (6), a SBQ, em conjunto com outras entidades de segurança da criança, faz um alerta específico sobre o perigo de manter o uso do álcool líquido em casa.

A exemplo do que acontece em muitas familias brasileiras, o pai da pequena Lorraine, de sete anos, se lembra de como foi ver a filha sendo tomada pelo fogo.

“Eu estava em casa assistindo televisão, então eles começaram a gritar. Fui ver o que era e quando cheguei lá, ela estava em chamas”, diz Célio Moreira da Costa, de 38 anos, morador de Itabirito (MG).

Lorraine Camile da Costa se queimou com álcool líquido quando brincava com o irmão mais novo em casa. O pai havia usado o álcool para acender a churrasqueira e deixado o frasco em cima da mureta da casa. O descuido rendeu um “brinquedo novo” aos filhos, que encheram uma lata com o líquido e resolveram fazer uma “fogueirinha”.

O resultado só não foi pior porque o pai soube fazer o socorro conforme recomendado pelos médicos. Ele tirou as roupas da filha, a colocou embaixo do chuveiro, envolveu seu corpo com um lençol molhado e correu para o pronto-socorro. Lorraine ficou com 38% do corpo queimado.

“Ela queimou as duas orelhas, a parte esquerda do rosto, o pescoço, o tórax, o abdome e as duas coxas”, conta Costa.

Desde 22 de abril, data do acidente, a criança está internada na unidade de queimados do Hospital João Vinte e Três, em Belo Horizonte. Seu estado de saúde ainda é considerado grave, mas ela não corre mais risco de morte. Segundo Costa, a filha terá que fazer fisioterapia para voltar a andar.

Só Brasil usa álcool para limpeza
Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2011, 2.374 crianças foram hospitalizadas no Sistema Único de Saúde (SUS) vítimas de queimaduras por exposição ao fogo, fumaça e chamas. Desse total, 30% estavam ligados a queimaduras com substâncias inflamáveis, o que inclui o álcool.

“O Brasil é o único país do mundo que usa o álcool líquido na limpeza doméstica e isso é um perigo. Esse tipo de queimadura provoca lesões de terceiro grau, que formam cicatrizes funcionais e estéticas permanentes por toda a vida”, alerta Mauricio Pereima, diretor da Sociedade Brasileira de Queimaduras.

A queimadura de terceiro grau é a que causa os maiores danos porque destrói todas as camadas da pele. A consequência é a perda da flexibilidade, da elasticidade e do seu aspecto estético natural. A pele queimada fica rígida, como um cimento, e nela pode surgir queloides, uma cicatrização imperfeita, que impede os movimentos.

Para tentar melhorar a vida desse tipo de paciente, a medicina opta por tratá-los em hospitais que possuem estrutura própria. Isso porque, na grande maioria dos casos, o paciente tem que ficar internado por meses e ser acompanhado por anos. Aliam-se a esses serviços, a necessidade de acompanhamento com fisioterapia e suporte psicológico até a vida adulta.

“Tem que fazer a cirurgia de remoção do tecido queimado, colocar enxerto para fazer a cobertura da pele, e depois várias cirurgias plásticas para melhorar a sua condição. Mas vale ressaltar que a aparência nunca mais será como antes”, diz Pereima.

As queimaduras se tornam ainda mais cruéis em crianças porque elas têm o corpo menor do que o do adulto e poderão ter menos pele para servir de enxerto. Isso sem contar o preço do tratamento, que pode chegar a mais de R$ 1.500 por dia de internação, segundo cálculo da SBQ.

Uma das alternativas é procurar tratamento no SUS. Mas a rede pública de assistência a queimados conta apenas com 45 serviços espalhados pelos 27 estados e no Distrito Federal, segundo o Ministério da Saúde.

Venda do álcool líquido x queimaduras
Um grupo de 17 entidades civis, entre as quais a SBQ, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e a ONG Criança Segura tenta sensibilizar membros do governo para restringir a venda de álcool líquido no varejo a, no máximo, 50 ml por embalagem. O objetivo é diminuir o número de queimaduras em acidentes domésticos.

A votação do projeto de lei (PL 692/2007), então favorável à restrição, sofreu uma reviravolta neste ano que desagradou essas entidades. Depois de ter sido aprovado por unanimidade na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da Câmara dos Deputados em novembro de 2011, o texto agora aguarda votação na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) também da Câmara dos Deputados.

No entanto, a relatora do CCJC, a deputada federal Sandra Rosado (PSB-RN), apresentou um texto substitutivo que exclui justamente a restrição de venda de álcool na forma de 50 ml do projeto, ponto principal da matéria.

O G1 tentou falar com a deputada, mas não obteve resposta até o fechamento da matéria.

Como forma de protesto, parte das entidades criou um abaixo assinado na internet para que as pessoas votem a favor da restrição.

Marisleine Lumena de Mendonça, membro do Departamento Científico de Segurança da Criança e do Adolescente da SBP, defende a mudança na legislação e a formação de medidas educativas para evitar o uso doméstico do álcool.

“Com educação, a população muda o comportamento e para de comprar álcool para limpar janela. As medidas legislativas são importantes para proibir a venda no comércio varejista, impor as travas de segurança no produto e frascos menores”, diz Mendonça.

Desde 2004, a entidade promove a campanha “Supermercado Amigo da Criança” que orienta o comércio varejista a vender somente a versão gel do produto.

Há dez anos, uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) determinou a substituição de álcool líquido pela versão gel e deu prazo de seis meses para os fabricantes se adaptarem ao novo produto. Nesse período, em que o produto parou de ser comercializado, o número de acidentes com álcool teria caído 60% e o número de internações hospitalares e a gravidade das queimaduras teriam reduzido 26%, segundo a SBQ.

Mas uma liminar concedida à Associação Brasileira dos Produtores e Envasadores de Álcool (Abraspea), no mesmo ano, permitiu que as 14 empresas afiliadas continuassem comercializando o álcool líquido no mercado. A associação foi criada em 2002 exatamente com a finalidade de impedir que a resolução vingasse. Em seu site, a Abraspea afirma que a venda de embalagens de 50 ml as tornariam mais caras e menos práticas.

Segundo uma pesquisa realizada pela associação de consumidores Proteste, em 2007, tanto o álcool líquido quanto gel pegam fogo facilmente. A diferença é que em caso de fogo provocado pela versão gel, as chamas não se espalham devido à sua viscosidade.

Ao testarem 18 produtos, 11 não preencheram os requisitos de segurança e mostraram que podem pegar fogo facilmente, até em contato com uma chama relativamente baixa, em torno de 26°C. Os testes comprovaram ainda que, com embalagens frágeis e sem travas de segurança, os fracos podem se romper facilmente e causar mais acidentes.

Após o teste, a entidade também passou a ser contrária a venda do álcool líquido para fins domésticos.
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