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Era uma tragédia anunciada, diz promotor que pediu vistoria na boate

Terra

Denúncias de bombeiros levaram o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) a solicitar em 2011 uma vistoria na boate Kiss, em Santa Maria, onde mais de 235 pessoas morreram no último domingo. Os relatos davam conta de que o estabelecimento não estava adequado ao plano de proteção contra incêndio e possuía ainda outros problemas, como inadequação sanitária e excesso de poluição sonora. O não cumprimento das medidas exigidas pela fiscalização levou o promotor de Justiça aposentado João Marcos Adede y Castro a requisitar, naquele ano, que fossem tomadas medidas de segurança no local. Ele afirmou, em entrevista por telefone ao Terra, que o incêndio "era uma tragédia anunciada".

Apesar de acreditar que possa ter havido falha dos bombeiros no caso, o promotor aposentado afirma que eram feitas fiscalizações frequentes nesse tipo de estabelecimento em Santa Maria. Ele denuncia, porém, que era comum a prática de "mascarar" a existência de itens de segurança como extintores de incêndio e fazer reformas sem o aval das autoridades - como fez a boate Kiss ao instalar no teto espuma de uso vetado por lei, de acordo com a polícia. Assim, os proprietários mantinham em atividade locais inseguros e colocavam a vida de seus frequentados em risco, segundo o promotor.

"É uma tragédia anunciada. Não nessa magnitude; mas, para nós que estávamos trabalhando com essas questões (de segurança), estava claro que algo de ruim iria acontecer", garantiu Adede y Castro. Ele afirma que a boate Kiss não era um caso isolado, e revela: "em geral, as boates (fiscalizadas em Santa Maria) eram fechadas, mas acabavam abrindo novamente".

Essa prática era conhecida pelo Corpo de Bombeiros, que combatia a desobediência das casas noturnas ingressando com denúncias no Ministério Público, de acordo com o promotor. "Nós atuávamos muito fortemente nessa questão da prevenção de incêndio. Os bombeiros reclamavam seguidamente que notificavam os estabelecimentos e alguns não atendiam às especificações. Eles se sentiam sem forças."
INCÊNDIO EM SANTA MARIA

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Denúncias
Inúmeros estabelecimentos teriam sido alvo de ação da Justiça e recebido multas ou até interdição, nos casos mais graves. As denúncias costumavam surgir por perturbação do sossego em função do barulho gerado pelos locais, o que levava as autoridades a fiscalizações mais apuradas - para verificar o alvará de funcionamento, condições sanitárias e adequação ao plano de combate a incêndio. Dias antes da tragédia, uma boate de Santa Maria foi interditada por estar com o alvará sanitário vencido desde 2002 e não ter alvará de localização.

"Boates, bares e comunidades ao redor (do Centro de Santa Maria) recebiam notificações mais em função do barulho do que por condições de segurança, mas, no geral, acabava se encontrando muitos mais problemas que davam início a inquéritos para averiguar alvará, plano de proteção contra incêndio, entre outros", afirmou João Marcos Adede y Castro. "Houve uma resistência muito grandes por parte dos estabelecimentos alvos da fiscalização no sentido de não cumprir as regras porque haveria muitas despesas."

O documento de 2011 solicitando vistoria não foi o único problema enfrentado pela boate Kiss antes da tragédia. Seus proprietários haviam assinado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público para a instalação de isolamento acústico, em um processo que se estendeu entre 2009 e 2012. A vistoria não constatou adequação ao necessário isolamento acústico, o que teria levado o proprietário a aplicar a espuma inflamável.

João Marcos Adede y Castro trabalhou entre 1989 e 2011 como promotor de Justiça em Santa Maria, cidade em que se aposentou e onde reside até hoje. Ele tem dois filhos jovens, com 18 e 20 anos - mesma idade de muitas das vítimas -, e um deles é estudante da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), que perdeu mais de 100 alunos na tragédia. "Eles eventualmente frequentavam a boate", disse o promotor aposentado. Colegas e amigos de seus filhos morreram na boate. "É difícil alguém que não conheça ou não tenha tido colegas mortos na tragédia."

Incêndio na Boate Kiss
Um incêndio de grandes proporções deixou mais de 230 mortos na madrugada do dia 27 de janeiro, em Santa Maria (RS). O incidente, que começou por volta das 2h30, ocorreu na Boate Kiss, na rua dos Andradas, no centro da cidade. O Corpo de Bombeiros acredita que o fogo tenha iniciado com um artefato pirotécnico lançado por um integrante da banda que fazia show na festa universitária.

Segundo um segurança que trabalhava no local, muitas pessoas foram pisoteadas. "Na hora que o fogo começou, foi um desespero para tentar sair pela única porta de entrada e saída da boate, e muita gente foi pisoteada. Todos quiseram sair ao mesmo tempo e muita gente morreu tentando sair", contou. O local foi interditado e os corpos foram levados ao Centro Desportivo Municipal, onde centenas de pessoas se reuniam em busca de informações.

A prefeitura da cidade decretou luto oficial de 30 dias e anunciou a contratação imediata de psicólogos e psiquiatras para acompanhar as famílias das vítimas. A presidente Dilma Rousseff interrompeu uma viagem oficial que fazia ao Chile e foi até a cidade, onde se reuniu com o governador Tarso Genro e parentes dos mortos. A tragédia gerou uma onda de solidariedade tanto no Brasil quanto no exterior.

Os feridos graves foram divididos em hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, para onde foram levados com apoio de helicópteros da FAB (Força Aérea Brasileira). O Ministério da Saúde, com apoio dos governos estadual e municipais, criou uma grande operação de atendimento às vítimas.

Na segunda-feira, quatro pessoas foram presas temporariamente - dois sócios da boate, Elissandro Callegaro Sphor, conhecido como Kiko, e Mauro Hoffman, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Enquanto a Polícia Civil investigava documentos e alvarás, a prefeitura e o Corpo de Bombeiros divergiam sobre a responsabilidade de fiscalização da casa noturna.

A tragédia fez com que várias cidades do País realizassem varreduras em boates contra falhas de segurança, e vários estabelecimentos foram fechados. Mais de 20 municípios do Rio Grande do Sul cancelaram a programação de Carnaval devido ao incêndio.
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