Imprimir

Notícias / Brasil

Cinema grátis ocupa escadaria escura e com ponto de tráfico em SP

G1

 Ao final da tarde de 20 de julho, um sábado, Dona Lôra saiu de casa para entender a movimentação na escadaria que liga a Rua Vermelino de Almeida, onde mora há 30 anos, à Rua José Alves da Silva, ambas vias do Jardim Ângela, Zona Sul de São Paulo. O local, naquele dia, foi transformado no primeiro cinema gratuito da região. Neste sábado (17), a escadaria recebe a segunda edição do projeto batizado de Cine Degrau.

Na inauguração, ao lado da avó, Gabriel Augusto, 16, buscava informações sobre a programação. Abriu um largo sorriso ao dizer o nome do filme que desejava assistir: "Jogos Vorazes". Por volta das 19h30, quando foi exibido o curta-metragem “Aquém das Nuvens” e, na sequência, o documentário carioca “A batalha do passinho”, a dona de casa de 54 anos que nunca tinha ido ao cinema, entendeu o fascínio que uma tela grande provoca em seus filhos e netos. “É bonito demais. Gostei muito. Pode ser que agora eu vá mais vezes”, confessou ao final da sessão dupla.
Lôra assumiu o apelido, importado de Conselheiro Lafaiete, interior de Minas Gerais, como nome. Na comunidade, só é conhecida assim. A origem remete à primeira cor de seus cabelos. "Quando menininha, era bem loirinha", explica. Até aquela tarde, a mineira não lamentava o fato de nunca ter pisado numa sala de cinema. Ela não é fã da ficção, e prefere a realidade seca do noticiário brasileiro. “Gosto de ver jornal, não ligo pra cinema, nunca chamou minha atenção. A gente levanta muito cedo, gosto de dormir cedo. É preciso pra aguentar o dia.”

Dar de ombros ao escurinho do cinema, porém, não a impediu de questionar a falta de acesso à cultura na região que escolheu viver desde deixou Minas Gerais. Para ela, independente da programação, a atitude de transformar a escadaria do bairro em lazer, é mais do que bem-vinda. “É muito bom. É um bairro grande e muito pouca coisa que vem pra gente."

A escadaria é conhecida na região por abrigar um ponto de venda de drogas. Antes da sessão, alguns moradores chegaram a cogitar problemas durante a estreia. “Aqui tem uma boca. Será que pediram autorização para fazer isso?”, disse um jovem ao passar pelo local. A relação, entretanto, parece mais cordial do que dramática. “Tem uns meninos que vendem as coisinhas deles aí, mas eles não mexem com ninguém, não”, defendeu uma senhora.
O projeto

Nascidos e criados no Jardim Ângela, onde ainda moram, Douglas Gomes dos Santos, 29 anos, e o irmão, Jefferson, são os idealizadores do Cine Degrau. Os dois criaram a Oca, agência de criatividade. O que hoje é uma produtora audiovisual, há quatro anos representava apenas o nome dado ao quarto dos meninos, local onde gravavam as músicas que compunham. À época, ambos faziam parte de um grupo de rap chamado Cacique Mirim – o que auto-explica o apelido da produtora.

“Começamos a procurar formação, curso para se especializar e poder produzir. O estúdio foi no nosso quarto, em casa. [A gente] grudava o microfone no teto, e ia gravando com fita cassete. Foi a primeira vez que começamos a perceber que poderíamos produzir a nossa arte e registrar.”
Os rapazes já sentiam a carência de lazer na região e a dificuldade de ter acesso ao que é ofertado nas áreas mais centrais da cidade. “Não tinha nenhuma instituição ou investimento do poder público. Tínhamos que sair pra outros bairros pra consumir cultura, e nos apresentarmos.”
Pipoca e filme reuniu a comunidade do Jardim Ângela no penúltimo sábado de julho (Foto: Rafael Stedile)
Pipoca e filme reuniu a comunidade do Jardim Ângela no penúltimo sábado de julho (Foto: Rafael Stedile/Divulgação)
O trabalho feito pelos dois chamou atenção de diversos músicos da região. “No começo a gente não tinha noção nenhuma de valor, começamos a fazer [como] voluntário mesmo. Gravávamos para ajudar os amigos músicos. Só que começou a crescer a demanda. E começamos a enxergar que era uma possibilidade de negócio na região que a gente vive. Isso foi o nascimento do estúdio", recorda Douglas.
Atualmente, a Oca tem espaço próprio, não mais na residência dos rapazes, e ganhou o reforço de uma dobradinha de “Déboras”. Deborah Boeira e Debora Pavani, experientes na produção de vídeo, completam a microempresa. Juntos, os quatro planejaram uma forma de transformar a escadaria em um pólo de cultura para os moradores - desejo antigo de Douglas e Jefferson.

Cotaram preços de colchonetes, aparelho de DVD, projetor e um telão. Com o orçamento feito, criaram o projeto do Cine Degrau em um site de financiamento coletivo. Fizeram um vídeo para estimular as doações. Arremataram, dentro do prazo, R$ 5 mil para bancar a estrutura e realizar a estreia no dia 20 de julho. Agora, começam a oferecer sessões a cada 30 dias, realizadas todo terceiro sábado do mês.

“A galera demora em acreditar que as coisas vão acontecer. Acham caro, acham que precisa ter muito dinheiro. Foi aí que tivemos a ideia de criar o cinema por financiamento coletivo. Mostrar que conseguimos fazer uma produção cultural com baixo custo e que as pessoas se envolvam desde o começo", ressalta Douglas.
Com um laptop em mãos, bateram às portas da vizinhança apresentando o projeto e mostrando a página em que as pessoas poderiam colaborar financeiramente.
"Na comunidade que a gente mora, boa parte das pessoas ainda não tem acesso à internet. E site colaborativo é só online. Passamos de casa em casa e mostrávamos o vídeo, pedindo dinheiro de casa em casa. E boa parte das colaborações foi feita por moradores."
Segundo Douglas, a escadaria sempre foi um ponto de referência no bairro. A falta de iluminação do local, porém, comprometia a imagem perante os moradores desde a infância dos garotos. “Era caminho da escola que a gente estudava. Na parte de baixo tem um ponto de ônibus. Era referência, mas a galera ia lá para usar droga. Ela é mal iluminada, a galera que estudava à noite ficava com medo de passar. A ideia é fazer com que continue sendo uma referência, mas de coisas positivas.”

Na inauguração, o público ocupou de forma tímida os colchonetes vermelhos que decoraram os degraus. A plateia engordou quando se deu o anúncio (e o cheiro) da presença, também gratuita, da pipoca. A escadaria ficou tomada por um grupo majoritariamente infantil. Mas era possível notar diversos adultos balançando o corpo durante a exibição do documentário sobre o funk carioca “A batalha do passinho”.

Onomatopeias de frustação quando o DVD ameaçou travar, e impedir a exibição da última cena do curta “Aquém das nuvens”, nesse caso, atestaram que o projeto foi bem recebido pela comunidade. “Acho que muita gente não está sabendo. Nas próximas ganha confiança, e o povo começa a vir”, aposta Dona Lôra.
Longe de tudo

Para a segunda edição, o coletivo tentou exibir um filme nacional lançado neste ano. Sem sucesso. Não conseguiram apoio. "Os filmes que passamos são independentes ou de produtoras pequenas, pois é muito difícil conseguir a liberação devido a falta e verba do projeto", explica Deborah Boeira. Neste sábado (17), será exibido o longa "Jennifer", do diretor Renato Candido.

O acesso à cultura e lazer no Jardim Ângela depende de iniciativas como as do grupo Oca. A área carece de incentivos públicos e privados. De acordo com dados da Prefeitura de São Paulo, a região de M´Boi Mirim recebe apenas dois projetos: o Ponto de Leitura, na Praça Bambuzal, e o Bosque de Leitura, no Parque Rodrigo Gásperi.
Segundo os jovens do coletivo, o bairro não é carente de cultura, mas de apoio, financiamento e principalmente de espaços. "Hoje na periferia os movimentos culturais são muito fortes e a maior parte independente. Esses movimentos aprenderam a batalhar sozinhos para que em seu bairro também tivesse opções de lazer e cultura. Podemos citar inúmeros movimentos de sarau, rodas de samba e até mesmo cinemas em locais improvisados. A comunidade faz o papel que deveria ser feito pelos governantes", analisa Deborah.
Imprimir