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Combate ao crime provoca mudança na lavagem de dinheiro

ValorOnline

Os trustees -empresas ou instituições financeiras que detêm e gerenciam ativos no benefício de outra pessoa, o beneficiário- e as fundações em paraísos fiscais têm sido cada vez mais utilizados como instrumentos de lavagem de dinheiro no Brasil. "As tradicionais offshores se tornaram muito visadas e os criminosos perceberam isso", diz o juiz Fausto De Sanctis, da 6ª Vara Criminal da Justiça Federal de São Paulo, especializada em crimes financeiros e lavagem.

Ele recebeu o Valor em seu gabinete, em São Paulo, com a condição de não falar especificamente de nenhum de seus casos ainda em andamento - que vão da já tão famosa Operação Satiagraha, que envolve o banqueiro Daniel Dantas, à Operação Castelo de Areia, que investiga executivos da Camargo Corrêa, passando pelos processos contra executivos dos bancos Credit Suisse, UBS, AIG e Clariden Leu.

De Sanctis se dispôs, no entanto, a comentar as novas estruturas que têm sido usadas na lavagem de dinheiro no Brasil, "um tipo de crime bem assessorado e com formas muito dinâmicas de atuação, que se ajustam à medida que o Estado avança na investigação". Especialista no assunto, De Sanctis foi na semana passada para Lyon, na França, participar de reunião plenária do Gafi - sigla em francês do Grupo de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro. Ele foi fazer palestra sobre lavagem no futebol.

Segundo De Sanctis, os trustees situados em paraísos fiscais são úteis para quem lava dinheiro, pois o nome do criminoso -o beneficiário- não aparece perante a lei. Um instituidor (settlor) se dirige a uma instituição financeira ou empresa especializada - trust company, o trustee ou nomeado - para que esse trustee passe a deter e gerenciar bens e ativos em nome do beneficiário de acordo com os termos fixados pelo instituidor. A constituição do trustee pode ser efetuada por instrumento particular e revogável, inclusive sem a necessidade de registro público.

Outra característica atraente para o uso do trustee na lavagem de dinheiro: os bens não integram o patrimônio do nomeado e vão constituir um fundo próprio. Essa é uma vantagem para o criminoso em relação às fundações, que ficam no nome do "laranja" e passam a integrar o patrimônio desse "laranja". "As fundações muitas vezes ganham vida própria", explica o juiz. Ou seja, o "laranja" pode trair o criminoso, não querendo entregar de volta o dinheiro ou patrimônio a ele. Isso não tem como acontecer no caso de um trustee.

Os trustees tiveram sua origem no direito anglo-saxão sucessório - pais que queriam deixar parte de seu patrimônio separado para um filho bastardo, por exemplo. Hoje, no entanto, o trustee geralmente fica sediado em paraíso fiscal e o beneficiário pode ser o próprio instituidor. A consultoria americana Tax Analyst calcula que o total de fundos geridos por meio de trustees somente na ilha britânica de Jersey chegaria a US$ 450 bilhões. Não há estimativas atualizadas, mas o Fundo Monetário Internacional chegou a calcular que o total de lavagem de dinheiro em 1996 seria de US$ 600 bilhões a US$ 1,5 trilhão só naquele ano.

Da mesma forma que os trustees, as offshores - empresas com capital de não-residentes que exercem atividades fora do local onde estão situadas - em paraísos fiscais escondem a identidade dos beneficiários da lavagem de dinheiro, comenta De Sanctis. Na constituição das offshores, a titularidade é comprovada por títulos ao portador e são apenas nomeados procuradores, o que representa "um véu eficaz para ocultar os verdadeiros proprietários", diz o juiz De Sanctis em seu livro "Combate à Lavagem de Dinheiro, teoria e prática", lançado pela Editora Millenium em 2008.

Segundo ele, "a criminalidade também adquire bancos internacionais" nos paraísos fiscais, porque todos os registros dessas instituições acabam manipulados. Os criminosos trocam a estrutura societária das empresas nos quais investem diversas vezes de forma a tentar apagar seus rastros. Para dificultar a lavagem, o juiz considera que o Brasil deveria exigir a identificação dos sócios de empresas que pretendem atuar no país e no sistema financeiro nacional, mesmo e principalmente quando essas empresas têm sede em paraísos fiscais.

Para De Sanctis, os paraísos fiscais "não deveriam poder usar ou ter informação sigilosa que vede a persecução penal". Ele reclamou especificamente da Suíça, que não considera a evasão fiscal um crime e tem se recusado a colaborar em investigações de crimes que tiveram origem no Brasil. Segundo ele, há nesse caso uma "ruptura de cooperação", visto que entendimentos multilaterais que determinam a rápida troca de informações e colaboração sem a necessidade de formalidades, como requerimentos ou cartas rogatórias.

"Na maior parte dos casos, inclusive no bloqueio de bens do criminoso, há hoje uma ampla colaboração entre os países quando se trata de lavagem de dinheiro", afirma. De acordo com De Sanctis, as novas e cada vez mais complexas estruturas financeiras e as modernas tecnologias têm permitido a internacionalização crescente do crime. "Máfias oriundas de diversos países investem recursos de forma global", afirma o juiz. O uso de meios de pagamento pela internet são mais um desafio para as autoridades, dada a falta de registro de muitas transações.

A cooperação internacional e a utilização de "forças-tarefas" específicas, não só nacionais mas também internacionais, compostas por funcionários de vários orgãos públicos, é fundamental para combater esses crimes, avalia. Há nos Estados Unidos por exemplo força-tarefas compostas pela Receita Federal, pelo Departamento de Imigração, pelo FBI e pelas diversas polícias, diz. Em 2007, De Sanctis foi conhecer durante duas semanas o funcionamento das agências anti-lavagem de dinheiro a convite do Departamento de Estado dos Estados Unidos.

"Para a descoberta do crime de lavagem de dinheiro, agregar informação de diversos lados e por muito tempo é o mais eficaz", afirma. Segundo ele, só assim é possível pegar um furo na atuação das quadrilhas cada vez mais organizadas, que falam por meio de códigos e têm assessores e advogados cada vez mais preparados e bem-pagos, que não raramente contam com a colaboração de funcionários públicos e políticos corrompidos. "Métodos tradicionais de investigação são absolutamente inócuos para fins de lavagem", afirma o juiz. "Diante do conhecimento exigido na área financeira, há uma verdadeira terceirização dos serviços de lavagem de dinheiro", conta.

A criação de varas especializadas têm ajudado a criar especialistas e contribuído de forma determinante no combate ao crime financeiro, avalia o juiz, que defende o uso de escutas telefônicas "com a devida parcimônia e respeito aos direitos individuais" e também a delação premiada como métodos de investigação. "O réu ajuda muito nas investigações da polícia e do Ministério Público, mas não se esgota como prova", diz De Sanctis. Ele considera fundamental também a prisão de acusados para "evitar fugas e manipulações diversas e a destruição de provas".
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