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Presos enfrentam dificuldades para estudar mesmo dentro dos presídios

Terra

 Você se lembra das suas primeiras palavras escritas? Um relato sobre as férias? A história da sua família? Uma breve biografia? Com anos de atraso em relação a uma criança de sete anos, adultos presos ainda analfabetos entendem rapidamente o poder transformador da alfabetização. E não raro os primeiros textos daqueles que aprendem a escrever dentro das cadeias são queixas sobre obstáculos para assistir às aulas.

O problema é atraí-los para a sala de aula. A adesão é baixa: apenas 9,2% do total de 513.713 homens e mulheres presos estudam. Deste número, pode-se traçar um perfil predominante: homens pardos entre 18 e 24 anos, com ensino fundamental incompleto. Considerando que a população carcerária brasileira é formada por 75% de pessoas com grau de escolaridade que varia entre o analfabetismo e o ensino fundamental completo, o percentual de estudantes poderia ser bem maior.

Levar o aluno da cela para a sala de aula dentro do presídio deveria ser mais simples do que obter uma autorização judicial e, enfim, acompanhá-lo a alguma instituição. Mas as dificuldades de quem está privado de liberdade e quer exercer o direito de estudar estão presentes nas duas situações. Problemas para sair da ala, críticas, falta de água para tomar banho: em 2011, estas foram as reclamações de um preso do Centro de Ressocialização de Cuiabá, que, por escrito, chegou a sugerir a criação de uma ala exclusiva para estudantes – em Mato Grosso, 30% dos presos estudam, segundo Rowayne Soares, educador responsável pela Implementação da Política de Educação em Direitos Humanos da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos do Mato Grosso.

Coletadas para a dissertação de mestrado de Soares, as queixas ainda valem dois anos depois. Soares acompanha a educação de presos no Estado há mais de 10 anos e, de março de 2010 a setembro de 2012, realizou sua pesquisa no presídio, com foco nas práticas de aprendizagem na Educação de Jovens em Adultos realizadas pela Escola Estadual Nova Chance.


Questões internas no presídio, como infraestrutura, disposição pessoal de agentes penitenciários, climas de tensão ocasionados por eventuais tentativas de fuga ou até mesmo dias de visita interferem no trabalho de educadores do sistema prisional. É o que relata Reginaldo Barata, diretor da escola, criada em 2009 exclusivamente para atender à demanda de ensino no sistema carcerário de Mato Grosso.

Imprevistos
Professor de filosofia, Barata conta que todas as 29 extensões da instituição, em 24 municípios do Estado, têm um conjunto organizado de aulas e turmas em cadeias e centros de detenção provisória. A instituição surgiu como uma forma de reunir experiências pulverizadas de reinserir o preso na sociedade. "Em cada unidade, há realidades diferentes. Há cadeias públicas onde a tensão é muito grande e temos que interromper atividades de aula porque surge um imprevisto ou procedimento interno para garantir a segurança", conta.

Um dos imprevistos relatados pelo diretor ocorreu em setembro. "Fui aplicar prova de supletivo e houve tentativa de fuga de madrugada, na ala de onde sairia a maior parte dos alunos que fariam a prova". Como as alas não são isoladas, toda a unidade fica em clima de tensão, complementa. "Por mais que os agentes sejam comprometidos, o clima não permite tirar alunos de todas as alas com a mesma agilidade de um dia normal". O diretor relata outros empecilhos para o aprendizado, como a estrutura precária das salas de aula, que deveriam contar com ar-condicionado para estimular a presença do aluno. "Salas de aula dignas fazem parte de uma 'coisa' chamada direitos humanos".

Somado a isso, Barata repara que há má vontade de alguns agentes penitenciários para colaborar com o deslocamento do reeducando. "Fica muito ao sabor dos ânimos de alguns agentes”, lamenta. Nos dias de visita, que variam em frequência e dia da semana conforme a unidade prisional, não é a "má vontade ou mau caratismo dos agentes" que compromete as aulas, mas, por uma questão de segurança, opta-se, na maioria dos casos, por cancelar as aulas. Ele explica que é preciso redobrar a atenção às pessoas estranhas nos corredores e à mudança de ânimos. "Alguns alunos recebem visita, outros não, e ficam chateados. Daí o clima de aceitação da ala naquele dia cai. O contexto de convivência muda, negativiza a tentativa de aula".

Não existe uma obrigação legal ou recomendação do governo para que não haja aula em dia de visita, segundo o juiz de direito da vara de execução penal de Porto Alegre, Luciano Losekann. "Depende de cada autoridade. No Distrito Federal, Rio Grande do Sul e São Paulo, por exemplo, há visita duas vezes por semana. Mas em nenhum lugar há impedimento para ter aula. É mais pelo tumulto da visitação". No Mato Grosso, os presos recebem visita uma vez por semana, dia em que não há aula – o que não significa que os professores fiquem de folga. Nesses dias, os educadores se deslocam para as assessorias pedagógicas ou para os Centros de Educação de Jovens e Adultos para discutir e buscar subsídios para suas aulas.

Segundo diagnóstico interno, a E. E Nova Chance atendeu, de 2009 a 2012, 1.364 estudantes até a 4ª série (o chamado primeiro segmento), 3.909 do 5º ao 9º ano (segundo segmento) e 1.517 no Ensino Médio. O método de ensino é o mesmo das aulas na Educação de Jovens e Adultos (EJA), cujo tempo médio para a formação completa é de seis anos.

Preso não, reeducando
Uma questão à primeira vista de simples nomenclatura tem grande importância para Barata. Para ele, os presos que estudam deveriam ser chamados de "reeducandos". "Usando esse termo atraímos eles para serem alunos", explica. "A forma de denominar o sujeito pode revelar o grau de compreensão que temos de sua realidade". A própria palavra "preso", tão naturalizada, deve ser revista para "pessoa privada de liberdade", diz, e destaca: "quanto mais claros formos no grau de tratamento, mais vamos ajudá-los".

12 horas de aula = um dia a menos na cadeia
Losekann acredita ser fundamental aproveitar o tempo ocioso daqueles privados de liberdade. Se é pra ressocializar alguém, nada melhor do que fazê-lo pelo trabalho e pelo estudo, acredita. "Isso, infelizmente, não é bem aproveitado pelas autoridades administrativas no Brasil", afirma.

Segundo o juiz, a redução na pena pelo trabalho prisional já era contemplada na Lei de Execução Penal 7.210 de 1984. A sua alteração pela lei 12.433 de 2011, que inclui a remição pelo estudo, foi uma forma de unificar as decisões judiciais. "Alguns juízes faziam a remição sem ter lei específica, e os critérios eram diferentes. A lei foi benéfica e prevê que a cada 12 horas de aulas assistidas, independentemente de aproveitamento, o sujeito pode descontar um dia na pena. Ficou permitida também a concomitância do trabalho e do estudo: alguns trabalham na cozinha e na limpeza durante o dia e estudam à noite, por exemplo.

Preconceito afasta professores
Apesar de experiências positivas como a da Escola Estadual Nova Chance, de Mato Grosso, o número de professores e pedagogos efetivos contratados pelo governo ainda é baixo, chegando a zero em Estados como Bahia, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e São Paulo, segundo o Ministério da Justiça. Losekann destaca, no entanto, que alguns estados contratam professores temporários. É o caso do Rio Grande do Sul, por exemplo, que tem em torno de 245 profissionais nesta situação.

No Mato Grosso, os números de contratados também são pequenos: zero pedagogos e cinco professores efetivos. No entanto, a contratação de educadores interinos pelo Estado compensa: são 92 profissionais com contratos temporários de 10 meses. Barata destaca o preconceito como um dos motivos para a baixa contratação. “Há muita resistência dos professores. A gente sempre associa o preso como alguém de alta periculosidade", diz, e desabafa: "É claro, não são salas de aula do paraíso, mas encontramos relações de afeto e respeito.”

Ala LGBTT tem adesão de 100% às aulas
O Estado do Mato Grosso também se destaca pela criação da ala LGBTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) em presídios como o Centro de Ressocialização de Cuiabá. Terceira iniciativa do país neste sentido, o CRC é um presídio masculino que, desde junho de 2011, reserva oito vagas para esta população em uma cela separada. É uma forma de “acolher os excluídos”, segundo Barata. O psicólogo do sistema penitenciário Mauro Falca trabalha no CRC e conta que a motivação sempre foi tirá-los de uma situação de vulnerabilidade extrema. “Principalmente pela questão da homofobia, ir para a escola é muito complicado; seguir uma carreira é muito complicado”, ressalta, complementando que o preconceito dentro da cadeia também é forte.

Se o fato de 30% dos presos do MT estudarem já tornam o Estado exemplar na questão, os 100% da ala LGBTT são motivo de orgulho. A adesão é estimulada pelo Estado: para que permaneçam na ala exclusiva, os detentos devem assistir às aulas e trabalhar. Todos aceitaram o trato.

Além da dedicação dos alunos, o trabalho dos educadores é de extrema importância, segundo Soares. "A conquista desta ala pertence ao trabalho dos professores na questão da diversidade e respeito aos direitos humanos. Estamos hoje colhendo o que governos do passado não fizeram. Não houve, para essa população, uma política pública de educação e de defesa de direitos humanos. Ficaram à mercê da marginalização e estão participando de um índice horroroso de analfabetismo, traumas, abusos e violências", afirma.
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