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Sobreviventes e famílias de vítimas da Kiss ainda esperam indenizações

G1

  Um ano depois da tragédia na boate Kiss, em Santa Maria, familiares das vítimas e sobreviventes ainda esperam o pagamento de indenizações. Além do ressarcimento por danos morais e materiais, despesas com funeral e gastos médicos também são reivindicados pela Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, que ajuizou uma ação coletiva para cobrar reparações financeiras. O incêndio que matou 242 pessoas completa um ano na segunda-feira (27).

(Até sexta-feira (24), o G1 conta como vivem sobreviventes e familiares de vítimas da boate Kiss e o que mudou na lei, nos hábitos e na vida das pessoas um ano depois do incêndio. A tragédia de 27 de janeiro de 2013 matou 242 pessoas.)

Ainda que o dinheiro não compense a ausência e a dor pela morte de 242 pessoas, como relatam as famílias das vítimas, a indenização é uma forma de mostrar a indignação. “Não preciso dizer que o dinheiro não vai trazer nossos filhos de volta. Mas é um direito nosso”, desabafou Jorge Nunes, 50 anos, que perdeu a filha Rafaela, 18 anos.

Os trâmites judiciais do processo, no entanto, ainda não renderam resultados concretos. Ajuizada dois meses após o incêndio na casa noturna, a ação civil coletiva cobra reparação do Governo do Estado, da Prefeitura de Santa Maria, dos proprietários da casa noturna, além de empresas que prestaram serviço à boate.

A ação ainda incluiu um pedido de liminar à Justiça para casos urgentes, com quatro pedidos: garantir as despesas alimentares de órfãos ou de quem perdeu o responsável pelo sustento da família, pagamento de pensão, das despesas com o funeral das vítimas e eventuais gastos com saúde, que incluem tratamento médico e psicológico para parentes e sobreviventes da tragédia.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul deferiu parcialmente a liminar, mantendo o que diz respeito a despesas alimentares e a pensão por diminuição ou incapacidade laboral, mas isentou o estado e o município de Santa Maria do pagamento. Como a liminar tem caráter provisório, a defensoria orientou as famílias a não receberem o dinheiro neste momento para não correr o risco de ter de devolver os valores depois, em caso de decisão contrária no STJ.

"Mas nós vamos recorrer. Queremos que município e estado paguem essa parte. Já bloqueamos R$ 5 milhões em bens dos particulares. Mas esse valor ainda está muito aquém”, salientou o subdefensor Público-Geral para Assuntos Jurídicos da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, Felipe Kirchner, em entrevista ao G1.

Com isso, o próximo passo da Defensoria Pública será apresentar o recurso no Superior Tribunal de Justiça (STJ) ainda neste mês. “Não vemos razão jurídica que justificasse que o município de Santa Maria e o estado do Rio Grande do Sul estivessem fora desse custeio”, ponderou o defensor. “É flagrante a responsabilidade do município e do estado, tanto por atos omissos quanto ativos nesse caso”, acrescentou. O recurso, porém, ainda será avaliado pelo TJ gaúcho antes de tramitar em Brasília, devido ao recesso.

Ação coletiva pode beneficiar 10 mil pessoas, diz defensor
Apesar de ainda não haver previsão para o julgamento do mérito da ação coletiva, o defensor público Felipe Kirchner é otimista quanto ao resultado. “Tudo vai se resolver nessa ação coletiva. A ideia disso tudo é dar seriedade para o procedimento e uma uniformidade de decisão. E também existe a questão de custo. A gente acredita, por exemplo, que essa ação vai beneficiar, por baixo, mais de 10 mil pessoas. Todas as pessoas que foram afetadas, de alguma forma, direta e indiretamente, pela tragédia”, expõe. “Seria inviável entrar com 10 mil ações. Então, a gente está procurando resolver tudo nessa única ação coletiva”, justifica.

A ação também não tem valor definido, mas deve ultrapassar os R$ 200 milhões, considerando que seja ao menos R$ 1 milhão por vítima fatal, conforme o defensor público. “Não fizemos um pedido fechado sobre valor, mas colocamos alguns paradigmas para o Poder Judiciário. Para dar um exemplo, há casos de decisões do STJ de pessoas que ficaram tetraplégicas após acidentes, por exemplo. O valor pago em indenização foi de R$ 1 milhão por pessoa. E nesse caso, só para dano extra patrimonial. Estou colocando isso apenas como uma referência”, pontua.

“Infelizmente, a gente sabe que as famílias não serão reparadas só com dinheiro. Mas queremos mais que isso. É uma questão de paradigma ético. Porque essa é uma tragédia que não pode se repetir”, reitera.

Em 12 meses, o estado recebeu 28 ações indenizatórias individuais, segundo dados fornecidos pela Procuradoria-Geral do Estado (PGE). A PGE defende que não há possibilidade de indenização por parte do estado porque não há demonstração de responsabilidade de seus agentes, seja de bombeiros ou de outros servidores estaduais, seja por ação direta ou omissão.

“A defesa tem procurado demonstrar que não estão presentes, do ponto de vista técnico-jurídico, os requisitos que configurem responsabilidade civil do ente público estadual. Não há indício de comportamentos omissivos ou comissivos dos agentes públicos estaduais”, alega o procurador do estado Gabriel Almeida de Almeida.

Já contra a Prefeitura de Santa Maria, foram, em média, 30 ações indenizatórias movidas contra o município, entre Justiça Estadual e Justiça do Trabalho. Em sua defesa, o Executivo municipal alega que há “falta de clareza” nas ações. “As ações, de maneira geral, apresentam falta de clareza na atribuição de responsabilidades ao município, sendo apenas mencionado e reiterado que o Poder Público concorreu para a ocorrência do evento ao conceder o alvará de localização”, explica a procuradora do município Mirela Marquezan.

Além disso, a prefeitura diz ter pago 29 funerais, com valores de até R$ 2,5 mil, levando em consideração o critério socioeconômico das famílias. "Os serviços pagos pelas próprias famílias, com notas emitidas em nome de pessoas físicas, não puderam ser pagos, por questões legais. O ressarcimento foi feito àquelas famílias que emitiram nota em nome da prefeitura", destacou a procuradora. "Em nenhum momento houve a promessa de pagamento dos funerais de todas as vítimas, haja vista que algumas eram de outras cidades. Deve ser lembrado ainda que o município não foi condenado judicialmente ao pagamento de verbas de caráter alimentar ou pensões", afirma.

Afetado pela morte da filha, homem teve de parar de trabalhar

Em uma casa simples de cinco cômodos no bairro Caturrita, em Santa Maria, Jorge Nunes, 50 anos, convive com a saudade desde 27 de janeiro de 2013. O prestador de serviços é um dos pais que integram a ação coletiva pedindo indenização pela perda da filha do meio, Rafaela, de 18 anos. Ela estava na boate com as amigas. Na mesma noite, antes da festa, a família comemorava o aniversário do pai.

O santa-mariense conta que sempre trabalhou para sustentar a esposa e as outras duas filhas, mas desde agosto está afastado por um laudo médico. Mesmo com o apoio do atendimento psicossocial, ainda não conseguiu voltar a trabalhar. "Sempre fui assalariado e nunca passei fome. Dinheiro é muito bom, mas não traz felicidade”, define Jorge, que entrou com pedido de aposentadoria por invalidez no fim do ano.

Ele é funcionário de uma empresa de serviço terceirizado de telefonia móvel na cidade. A mulher Lenir cuidava da casa, mas após a tragédia passou a ajudar a cunhada nos cuidados com o sobrinho, que é deficiente físico. “Ganha uns R$ 400”, diz Jorge. A renda baixa traz problemas para o casal, que conta também com a ajuda da filha mais velha, Renata, de 27 anos, grávida de oito meses.

Jorge recebe junto a outras 28 famílias auxílio mensal da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) com doação de cestas básicas. “Estamos passando dificuldade financeira. Todo mês a associação traz alguma coisa, cesta básica. A gente se vira com o que tem”, conta.

Além da ação coletiva, Jorge entrou também com uma ação individual. A filha mais velha era contra entrar com pedido de indenização. “Ela dizia, 'pai, como vou comprar uma calça, um carro, com o dinheiro da desgraça da minha irmã?' Então disse que a gente poderia utilizar esse dinheiro e ajudar outras pessoas. Não é para a gente enriquecer”, justifica o homem.

A decisão de entrar com o pedido de indenização foi tomada um mês o incêndio. Apesar da vontade de buscar justiça financeira, para Jorge ainda é difícil tratar de determinados assuntos, como o valor da indenização. Ele conta que uma reunião antes do Natal reuniu outros pais para tratar do assunto.

"A gente jamais imaginou que passaria por isso. Eu disse que a vida da minha filha não tem preço. Que cara ou coração vou ter para estipular o preço da vida de um filho?”, argumenta Jorge.

Entenda
O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, na Região Central do Rio Grande do Sul, ocorreu na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013. A tragédia matou 242 pessoas, sendo a maioria por asfixia, e deixou mais de 630 pessoas feridas. O fogo teve início durante uma apresentação da banda Gurizada Fandangueira e se espalhou rapidamente pela casa noturna, localizada na Rua dos Andradas, 1925.

O local tinha capacidade para 691 pessoas, mas a suspeita é de que mais de 800 estivessem no interior do estabelecimento. Os principais fatores que contribuíram para a tragédia, segundo a polícia, são: o material usado para isolamento acústico (espuma irregular), a utilização do sinalizador em ambiente fechado, saída única, indício de superlotação, falhas no extintor e exaustão de ar inadequada.

Estão em andamento os dois processos criminais contra oito réus, sendo quatro por homicídio doloso e tentativas de homicídio e outros quatro por falso testemunho e fraude processual. Os trabalhos estão sendo conduzidos pelo juiz Ulysses Fonseca Louzada. Sete bombeiros estão respondendo pelo incêndio na Justiça Militar. O número inicial era de oito, mas um deles fez acordo e deixou de ser réu.

Entre as pessoas que respondem por homicídio doloso, na modalidade de dolo eventual, estão os sócios da boate Kiss, Elissandro Spohr (Kiko) e Mauro Hoffmann, além dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, o vocalista Marcelo de Jesus dos Santos e o funcionário Luciano Bonilha Leão. Os quatro chegaram a ser presos nos dias seguintes ao incêndio, mas a Justiça concedeu liberdade provisória em maio do ano passado. Entre os bombeiros investigados está Moisés da Silva Fuchs, que exerceu a função de de comandante do 4º CRB de Santa Maria.

Atualmente, a Justiça está na fase de depoimentos dos sobreviventes da tragédia. O próximo passo será ouvir as testemunhas. Os réus serão os últimos a falar sobre o incêndio ao juiz. Quando essa fase for finalizada, o juiz deverá fazer a pronúncia, que é considerada uma etapa intermediária do processo. Se o magistrado pronunciar o réu, vai a júri. Senão, é absolvido. Outra possibilidade é a chamada desclassificação, quando o juiz não manda o réu para júri, mas reconhece que houve algum tipo de crime. Neste caso, ela vai julgar a causa de forma individual. Também existe a chance de absolvição sumária dos réus. Em todas as hipóteses cabe recurso.

No âmbito das investigações, três estão sendo conduzidas pela Polícia Civil. Além dos documentos sobre as licenças concedidas à boate, um inquérito apura as atividades da empresa Hidramix e outro uma suposta fraude no documento de estudo de impacto na vizinhança do prédio onde ficava a casa noturna. O Ministério Público, por sua vez, investiga as responsabilidades de servidores municipais na tragédia.

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